A linguagem tem várias formas. Linguagem se associa à língua e, talvez, a forma mais predominante de expressar-se deve ser a fala. Falamos mais do que escrevemos. Comunicamos melhor falando que escrevendo? Alguns. Outros o fazem melhor através da arte. Pinturas, poemas, livros, esculturas, todas essas formas podem ser consideradas as ideais de comunicação para alguns.
Eu falo mal.
Expresso-me de forma confusa em qualquer idioma oral. Gaguejo. Não consigo que
meus lábios se movam com a mesma frequência que meus pensamentos. A minha avó
tinha dificuldade em me entender. Os mais próximos talvez já nem percebam pelo
simples motivo de ter o costume. No entanto, sempre que tenho algo mais
relevante para transmitir, escrevo. Exemplo? Após uma semana espetacular
recheada de saudosismo e amizade genuína com meu irmão Pingo em sua casa, saí,
me despedi, agradeci. No meio do caminho uma mensagem de texto “oficializando”
o meu agradecimento.
A Mirtes nos
deixou essa semana. Um golpe duro. Nesses últimos dias me comuniquei com o Nuno
por mensagens de voz. Ele me mantinha atualizado sobre a situação da Mirtes.
Mandei algumas mensagens longas, confusas, me perdia. Ainda não criei coragem
de ligar para as três pessoas que pretendo ligar algum dia para dizer algo: o
próprio Nuno, a Bola e a Michele; Michelle, senão a alemoa me xinga. Quando
ligarei para eles não posso dizer. Nesse momento eles não deverão querer me
escutar. Pode ser amanhã, no próximo fim de semana ou no ano que vem. No
momento correto eu saberei o que fazer. Devido a toda essa impossibilidade,
contando, obviamente, a distância, decidi manifestar algo através de meu texto.
Seu filho o fará melhor quando também perceber que o momento chegou. A Michelle
escreveu lindas palavras e ilustrou com imagens da Mirtes saltando como uma louca
num pula-pula. Não poderia ter escolhido melhor. Que definição mais perfeita e
apurada sobre quem era a Mirtes, quem é a Mirtes porque só se morre quando se é
esquecido e essa terá muitos cérebros, alguns mais veteranos, outros juvenis,
para jamais deixá-la nos deixar. A minha querida e saudosa amiga Alina também
nos entregou lindas palavras – “a Mirtes era a segunda mãe de todos”. Não há
melhor definição. A Mirtes, se indagada sobre em que era melhor, deveria dizer
em ser mãe. Poderia estar na sua carteira de trabalho. Profissão: mãe.
Todo mundo
amava a Mirtes. Todo mundo deve ter contado sobre a sua luta a alguém mais. Eu
o fiz. Minha mãe, que nunca a conheceu, rezava por ela todas as manhãs.
Minha esposa a mesma coisa. Ela a conheceu. Foram alguns encontros e suficientes
para causar aquilo que a Mirtes causava em todos que a conheciam. “Adoro a Marcela”
ela me dizia sempre. Era para eu me sentir melhor? Não, era porque ela
realmente adorava alguém que ela mal conhecia.
A Mirtes
tinha isso. Uma aura? Uma alma? Uma personalidade? Eu, mais tosco, iria pela
personalidade. Mas, pela Mirtes, abro uma exceção e aceito que alguma outra
coisa ela deveria ter, sabe-se lá o quê.
Pois quando
falava com minha mãe e com a Marcela, estas, sem culpa, referiam-se à Mirtes
como “a mãe de um amigo do Eduardo” ou “la mamá de un amigo de Eduardo”.
Mentalmente as corrigia e admito que até uma raiva injusta sentia. Como vão
dizer que a Mirtes, a minha Mirtes, era uma simples mãe de um amigo? Começando
que são dois amigos que amo e aí incluo a já citada irmã, Michelle, que também
era filha da Mirtes. Todos éramos, de certa forma. O curioso foi que algumas
pessoas que souberam do falecimento da Mirtes por mim ou já através das pessoas
que eu contei, me deram os pêsames. Para mim.
A Mirtes
pertencia a mim. Pertencia a todos. Como disse ao Nuno, a Mirtes era
propriedade de todos. Ou, pensando bem, todos nós éramos propriedade da Mirtes.
A Mirtes, nunca dona Mirtes. Nunca a mãe da Daiane ou a mãe do Nuno: A Mirtes.
E que seus filhos biológicos não fiquem ciumentos. O carinho e a atenção da
Mirtes não tinham limite. Ela ia conhecendo mais pessoas e a sua capacidade de
expandir seu extenso número de pessoas para ela gostar e querer que estivesses
ao seu lado, no seu sofá ia aumentando em proporções geométricas.
Em muitas
oportunidades a Mirtes me trazia do colégio para minha casa. Certa feita,
estacionada em frente ao colégio, um professor se aproximou, Celso Godinho, e
este disse à Mirtes que eu estava incomodando muito na aula junto com a Dani, o
seu terror. Esse dia eu e a Dani ficamos meia hora a mais do recreio batendo
bola na quadra. Como esquecer. Nada no Exupèry era sério. Celso disse isso
rindo. Ele sabia que a Mirtes não era a minha mãe, mas disse igual. Enquanto eu
e a Daiane ríamos no banco de trás, Nuno no banco da frente, Mirtes escutava e
depois, furiosa, me disse: “tu tens que parar com isso, guri, deixa de ser sem
vergonha”. Ela foi a única que encarou a coisa de uma forma diferente. Foi
cômico a todos os demais. Ela leu de outra forma. E isso acontecia seguidamente
com a Mirtes. Ela era diferente. Via e sentia a vida de forma diferente. Tinha
certa dificuldade de entender duas coisas: ironias e sarcasmo. E como
aproveitamos dessa falha dela para nos divertir...
Hoje meu
amigo Dieguinho, em uma ligação que me tocou, me disse com números, bem dele:
dos 14 aos 18 anos estávamos TODOS os dias na casa da Mirtes. Verdade. Depois
começaram as universidades e seus horários alternativos e isso dissolveu um
pouco. No entanto, durante esses quatro anos, foram, sim, todos os dias.
Histórias não
faltam. Estávamos numa fase de crescimento. Comíamos sem parar. A Mirtes corria
de um lado para o outro, falava sozinha na cozinha pensando alto. Um dia a
escutei falar consigo mesma: “já não sei mais o que dar para vocês comerem!”.
Tínhamos comido tudo que havia na casa. Lembro que a cartada final foi o
Bolídio assando salames italianos na lareira. E ela adorava isso. Uma vez me
fez passar por apuros quando me disse, com cara de preocupação e tudo, que eu
tinha comido a maçã do Ico. Quando eu já estava prestes a me levantar e
sair pela noite para comprar uma maçã, ela me disse em meio à sua linda
gargalhada que eu fosse me catar e que eu fosse à merda. Claro, a Mirtes jamais
negaria uma maçã. Ela jamais negaria qualquer coisa, gostava de todo
mundo e de agradar a todo mundo. Uma das minhas repetidas formas de irritá-la
era, quando almoçava lá, perguntar se eu podia me servir mais e lá vinha o
clássico vai à merda ou vai te catar da Mirtes.
Por que nos encontrávamos sempre na casa da
Mirtes dentro de um condomínio onde havia tantas casas de tantos amigos
queridos? Nunca nos perguntamos isso. Nunca sequer colocamos em pauta qual
seria o ponto de encontro. Era a casa da Mirtes. O Lipe morava há 10 passos da
casa da Mirtes. Se fosse por número de integrantes, na casa dos Soares Pereira
havia 3,5 integrantes, mais do que os três da casa da Mirtes e me refiro aos
“jovens” habitantes de tais moradias. Pois hoje me perguntei por quê. Era pela
Mirtes.
Na era
pré-celular, e eu devo lembrar aos amigos leitores que fui o último a ter (sim,
somente para contrariar) eu aparecia sem saber se o Nuno, a Michelle ou a Bola
estaria. Mas a Mirtes quase sempre estava. Dizia-me que o Júnior e a Daiane não
estavam, mas complementava com o clássico “fica aí, guri” dela. E eu ficava.
Conversando com a Mirtes.
Disse algumas
vezes ao Nuno e a outros que é impossível não lembrar da Mirtes sem rir, mesmo
estando todos nós no meio dessa injusta tragédia. Tenho inúmeras lembranças.
Rio sozinho em casa entre lágrimas que não cessam de querer dar o ar de suas
tristes graças. Talvez o único momento em que Mirtes pensava em si mais que nos
demais era na hora da novela. Ela gostava, queria escutar. E, coitada, JAMAIS o
podia fazer sozinha, em silêncio, concentrada. Sempre havia três ou quatro na
sala. Com ela. Obviamente não pela novela. Mesmo assim, apesar de estar vivendo
o seu momento, a cada intervalo ela se levantava, entrava na conversa (meu
Deus, como falava a desbocada Mirtes...) ou saía num pulo para resolver os
problemas que ela captava que, sem muita variação, quase sempre era o desespero
dos demais de comer algo. E lá ia ela revirar a cozinha e trazer coisas. Ah, e
isso quando ela não se sentava no chão da sua própria casa. Se ela chegava
quando as vagas dos dois sofás já estivessem repletas, se jogava no chão.
Obviamente todos ofereciam, sem muita esperança de que suas propostas seriam
aceitas, os seus lugares; mas lá vinha ela de novo nos mandar à merda e, com o
seu espírito eternamente infanto-juvenil, se atirava no chão. Divina a Mirtes.
Não lembro
quem foram os agraciados em presenciar tal cena, mas a Mirtes, depois de me
mandar calar a boca em diversas oportunidades – sim, ela era autêntica e
espontânea ao extremo – se levantou. Saiu da sala. Voltou me olhando fixamente
e com um passo entre um caminhar apressado e uma corrida. Soma-se a essa
espécie de trote, um olhar diferente, assassino, ameaçador. Quando chegou há
poucos centímetros de mim, sacou uma fita durex e me colou na boca.
Gargalhadas. De todos, mesmo de mim tendo a boca semi colada.
A briga com a
Michelle. Das cenas mais bizarras e cômicas que já vi. Terminaram ambas em cima
da cama do Nuno agarradas aos tapas uma montada em cima da outra. Desse dia eu
sim lembro que somente o Gui me acompanhava. Nuno consternado tentando separar
e eu e o Gui sem saber que fazer, se ajudar a separar ou se rir.
Falando em
brigas, Mirtes era teimosa como poucos e parecia, com sua voz alta e firme,
desfrutar de discutir, mais do que tudo com a Daiane. Era SEMRE a mesma coisa.
Um comentário da Mirtes. Daiane contrariava. Mirtes partia para a tréplica,
Daiane replicava já, claro, rindo. Mirtes, como disse antes, tinha outra
percepção das coisas. Todos os presentes começavam a segurar – ou não – as
risadas. Mirtes séria discutindo. E isso acabava com a gritaria das duas que,
minutos depois, se tornavam gargalhadas.
Flamengo x
Grêmio. Se o Grêmio segurasse o Flamengo, o coirmão seria o campeão. 99% da
torcida do Grêmio torcendo, óbvio, pela derrota do Tricolor. Mirtes não. Mirtes
tinha valores e conceitos incorruptíveis, imaculados. Convicções fortes que,
muitas vezes, se mesclavam com sua teimosia. Fomos, todos gremistas dessa vez,
ver o jogo na sala dela. Ela indignada. O Grêmio saiu na frente, ela comemorou.
Teimosa. Eu indignado resignando à minha posição de torcedor desse clube
traidor. Flamengo empatou, gritos de alegria na sala. Mirtes indignada nos
dando lições de moral. O Flamengo virou: abraços e gritos de alívio de todos.
Mirtes se levanta e vai ver outra coisa no quarto dela e saía da sua própria
sala falando sozinha e blasfemando contra todos nós. Tinha convicções.
Percepções diferentes. Era outra espécie.
Levo um CD do
John Fogerty. Essa relembrei com o Nuno nesses últimos dias. Coloco. Do nada
vejo a Mirtes se aproximando. Enlouquecida. Olhos fechados, em transe, em outro
mundo. Começa a dançar. Não sei se rir. Rio. Paro. Volto a rir. Mirtes nem aí.
Autenticidade pura. Dançou sem parar todas as músicas enquanto eu, sentado com
o Nuno e Bola, ríamos do espetáculo. “Guri, tu vais me emprestar esse disco,
né?”. Nem sei se algum dia o trouxe de volta.
Fui também
colega de academia da Mirtes por um breve período. Incomodava ela dizendo que
ela só ia para conversar. “Que nada, guri, deixa de ser besta!” Era a única
pessoa que ainda usava a palavra “besta”. Na academia, sempre cercada de gente,
de todas as idades. Eu ia de bicicleta e um dia começou a chover aos cântaros. Ela
disse que melhor eu voltava com ela. E a bicicleta? Segundo ela dava para meter
no carro. Não sei como, mas ela conseguiu. No caminho para casa ela quis parar
no Casca, mercado favorito dela. Ela entrava e falava com TODAS as pessoas do
recinto.
Sala lotada.
Alguém que não me lembro quem foi, se levanta para ir ao banheiro. O vaso
sanitário do banheiro “público” da casa estava entupido. Mirtes, sem titubear,
pergunta, no meio de todos: “tu vais fazer cocô? Porque se sim vai no meu
banheiro”. Quem normal faria isso? Ela perguntou seriamente, com a maior
naturalidade do mundo. Após a reação de todos os presentes ela riu, mas, como era
peleadora, começou uma discussão coletiva contra todos onde argumentava não ver
problema na pergunta. No mundo dela, na cabeça dela. E oferecer o próprio
banheiro para tais propósitos? Quem mais, só a Mirtes.
Foi-se a
Mirtes. Deixou-nos. Por quê? Não sei, não entendo e não quero entender.
Adoraria ter uma crença que me permitisse ter a tranquilidade de que a última
vez que nos vimos não foi a última vez que ela vai me xingar, me chamar de
besta e, ao final, dizer para eu ficar mais ou voltar no dia seguinte. Nessa
solidão que me pegou a morte da Mirtes eu fui aos nossos chats de whatsapp.
Escutei a última mensagem de voz que ela me mandou. Chorei. Fui mais atrás e
encontrei uma mensagem que expressa um pouco essa alegria de receber que ela
tinha. Disse a Mirtes: “venha almoçar aqui no sábado. Mas antes disso passa
aqui para conversar com a Daiane que está aqui. Melhor ainda: vem amanhã ver o
jogo”. Simplifiquei a mensagem. Em resumo, ela me convidou para ir todos os
dias da semana lá vê-la e hoje penso que daria o que fosse necessário para ter
pelo menos uma semana com a Mirtes.
Sinto-me até
um pouco egoísta em trazer isto à tona, mas a Mirtes era uma pessoa que me
fazia sentir extremamente especial. Muitas vezes, em minhas visitas a Porto
Alegre, deixo de fazer algumas visitas, pois tenho o negativo pensamento de
crer que já não são tantas as pessoas que ainda têm o interesse em me ver.
Mirtes me deixava sempre claro que, pelo menos com ela, isso não era real.
Xingava-me por não ir com mais frequência. Também sendo egoísta, Mirtes era
Zona Sul, era um imaginário de um nostálgico enfermo como eu, era parte dele,
parte fundamental. Esse abandono que a Mirtes me deixou e a muitos mais, é este
imaginário cada vez perdendo mais peças, é uma época se apagando e dizendo
que tudo passa e que já não voltará jamais. É o vilão tempo colocando
obstáculos às nossas memórias. Com a Mirtes morre uma parte grande de todos nós
que fizemos parte dessa comunidade, dessa amizade. A Mirtes nos arranca um
pedaço importante de nossas histórias, de nossa evolução como seres humanos.
A Mirtes
gostava de futebol e quantos não foram os jogos que vimos juntos. Tinha
dificuldade em entender a regra do impedimento, até aí tudo bem. Minha vó nunca
entendeu e partiu sem entender. O problema grave da Mirtes era não entender a
regra do “perigo de gol”. Ela tinha surtos de indignação por coisas que apenas
podiam causar graça aos reles mortais, mas uma das coisas que mais a indignava
era não entender a tal regra. TODOS comentavam, inclusivo os mais idôneos como
o seu Eugênio. “Ah, foi perigo de gol”. A Mirtes saltava INDIGNADA. “Como
assim? Se o propósito do futebol é fazer gols!”. Mirtes sempre de prontidão para
defender suas convicções com sua voz alta, firmeza, palavrões, cara série e, claro,
risos. Justificávamos dizendo que era uma regra, deveria ser respeitada...e o
dizíamos entre risos. Mirtes seguia indignada. Nunca suspeitou que a gozávamos.
Foi embora sem que nós tivéssemos amadurecido o suficiente para lhe dizer a
verdade. Tudo bem, não perdeu nada e se ela soubesse que isso nos causava
motivos para sorrir, estaria orgulhosa de seu papelão. Se eu estiver errado e
algum dia possa me encontrar com a Mirtes em algum lugar vou lhe dizer que sim,
deveria ter ido mais vezes visitá-la e, depois de ser chamado de besta ou de
abobado, lhe explicaria que “perigo de gol” é uma ironia e, como muitas
ironias, ela interpretava de uma forma diferente, da sua forma, da forma da
Mirtes.
2 comentários:
Bah, que baita texto. Que prazer ter feito parte desse mundo Mirtes. Que pessoa fantástica que passou pelas nossas vidas de uma maneira tão intensa.
Nossa!!!!
Fiquei sem palavras, como queria ter conhecido pessoalmente essa mana querida.
Postar um comentário