Não vou
mentir ao dizer que lembro da primeira vez que ouvi os Rolling Stones tocar.
Não lembro. Meus pais sempre foram grandes fãs da banda o que me faz pensar que
devo ter escutado desde os primórdios de meus meses fetais. Meu pragmatismo me impede
crer que isso possa ter influenciado minha admiração vindoura, mas, após
abandonar o conforto uterino e chegar a uma idade em que música poderia ser
escutada e não somente ouvida, comecei a gostar. Uma vez mais não vou poetizar
a história e dizer que me apaixonei pela banda em minhas mais púberes idades.
Gostava apenas.
Na
pré-adolescência comecei a realmente gostar da arte música. Outra vez: os
Rolling Stones não eram os meus favoritos apesar de que estavam incluídos entre
os primeiros CD’s que ganhei/comprei. Meu pai dizia que estes eram os melhores
e fazia vista grossa a bandas mais contemporâneas. Eu apenas respeitava e
discordava em um silêncio de altos decibéis e de frenéticos solos de guitarras
de bandas mais pesadas como Metallica e Iron Maiden, os meus xodós da idade
escolar. Relaciono, aqui sentado, idade a gosto musical. Com limites,
obviamente. O excesso de energia, rebeldia, revolta, ânsia de questionar e de
chamar a atenção, são características que talvez tenham feito que o jovem
Eduardo se inclinasse pelas bandas que abrigavam em seu colo tais
características. Vale ressaltar que sigo idolatrando estas e outras bandas de
som mais agressivo, mas estas deixaram de ser as minhas favoritas. Digo, em uma
espécie de “sincericídio”, que a perda de energia causada pela idade é
diretamente proporcional ao número de acordes por segundo dos guitarristas de
nossas bandas favoritas o que também inclui a velocidade em que os bateristas
manejam suas baquetas.
Nos
primórdios de minha vida universitária comecei a me dar conta de que as audazes
certezas infanto-juvenis não eram reais. Todo juvenil jura que seus gostos,
ideias e ideais jamais mudarão, que são dogmas rochosos; pois eu, como todo
mundo, mudei. A energia foi se esvaziando, mais paciência foi ganhando espaço,
visão de mundo foi se modificando e comecei a diminuir o número de acordes de
minhas guitarras. O avanço da internet que permitia que pudéssemos escutar tudo
e todos sem depender da já decadente MTV, também foi um fator. Ouvi álbuns
inteiros dos Rolling Stones, diferentes aos que eu tinha. Álbuns mais antigos
dos que eu tinha. E certa feita escutei “Let it Bleed” que, para mim, é
um dos melhores da história da banda. A partir desse momento, os Rolling Stones
começaram o lento processo de chegar, com paciência típica de senhores de então
uns 60 anos, ao topo de minha bastante exigente pirâmide musical. A última
banda que ficou pelo caminho foi The Doors. Chegaram ao topo. Com calma. Se eu
fosse uma pessoa egocêntrica, diria que esta é uma grande conquista dos Stones:
conquistar a alcunha de banda favorita de um jovem universitário depois de mais
ou menos 45 anos de carreira. Sou difícil de ser conquistado.
A novidade do
Youtube permitiu vê-los “ao vivo”. Cansei de ver fascinantes performances da
banda nas mais variadas décadas de sua existência. Aprendi a adorar cada membro
e começou aquele não-planejado sentimento de conhecer não só os membros da
banda, mas as pessoas. Fui morar na Inglaterra e um de meus objetivos era
vê-los ao vivo. Não foi possível pelas mais distintas razões.
Somente consegui estar em um de seus shows pela primeira vez em Bogotá, há
pouco mais de cinco anos atrás. Desde o momento que a banda invadiu o palco ao
som de Jumpin’ Jack Flash minha relação com a banda foi fortemente modificada,
algo que não considerava possível de acontecer. Algumas lágrimas, para a minha
surpresa, escaparam languidamente de meus olhos. Ver os Stones ao vivo foi, sem
dúvidas, a maior experiência artística da minha vida. Lembro de ter perguntado para
o Lucky, que já os tinha visto em Porto Alegre antes de eles chegarem a Bogotá,
se eles ainda conseguiam oferecer um show respeitando o significado de tal
palavra e considerando as idades avançadas de seus membros. A resposta tinha
sido “eles são demais, o show é fantástico”. E sim, ver a maior banda de todos
os tempos ao vivo, contrariando leis da física, do bom senso e da natureza, é
fantástico, foi fantástico.
Anos depois,
a banda anunciou uma nova turnê pelos Estados Unidos. Como quem não queria
nada, fui averiguar as datas. O show em Miami, há menos de três horas e meia de
voo daqui, cairia na Semana Santa que eu teria livre na universidade. Pensei em
ir e minha esposa me convenceu em dois minutos. Não tenho uma esposa normal que
diria que era um desperdício de dinheiro e energias. Ela tinha mais certezas
que eu. Comprei passagem e ingresso. Veio a cirurgia de Mick Jagger e toda a
turnê foi adiada. Para agosto. Troquei a passagem. O show seria num sábado e eu
viajaria na sexta e retornaria no domingo. Em uma tarde, caminhando pelo
campus, recebo um e-mail: a data do show havia – novamente – sido modificada. Sentei-me,
abri o e-mail e li calmamente: ao invés de ser no sábado, seria na sexta.
Felizmente o meu voo era vespertino e o show noturno. Fui do aeroporto
diretamente para o estádio e vi, não somente os Stones novamente na minha frente,
mas a última apresentação de Charlie Watts com a banda e, consequentemente, a
última vez que os quatro Stones tocaram juntos. Quis o destino. A fortuna que
gastei e a energia valeram cada centavo/gota de suor.
Quando os
Rolling Stones eram apenas uma banda para mim, assim como a grande maioria,
tinha a Mick Jagger e Keith Richards como meus favoritos. Desde que esses
quatro velhotes passaram a ser mais do que membros dos Rolling Stones para mim,
Charlie passou a ser meu favorito. Certa feita minha esposa me disse que minha
vida em nada se modificaria se amanhã eu passasse a ser o homem mais rico
do mundo. Eu a corrigi adicionando a palavra “quase” antes de nada. Charlie
Watts não era o homem mais rico do mundo, mas possuía fortuna infindável e era
um rolling stone. No entanto, Charlie sempre se sentiu um ser comum. Não
critico as vidas lascivas, excêntricas, cheias de excesso e de procriação
desenfreada dos demais membros do grupo. Defendo a teoria de que algumas
pessoas, por razões que seriam contraditórias de explicar, têm certos
direitos que nós, mortais, não temos. Aceito que Mick Jagger possa fazer coisas
que eu não poderia fazer. São seres especiais. Charlie poderia ser dessa casta,
mas, usando suas próprias palavras, era apenas um cara que tocava música.
Charlie Watts
foi um rolling stone casado desde os primeiros anos da banda com a mesma
mulher até a sua morte. Teve uma filha apenas e dentro do casamento. Dizia ter
quatro carros antigos que não dirigia nunca. Era o caricato exemplo do baterista:
sempre atrás com poucas luzes em cima de si. Charlie era um baterista genial
sem jamais ser protagonista. Ginger Baker, John Bonham, ambos mostravam sua
exuberante qualidade em solos e, de certa forma, arrastavam os holofotes para a
zona opaca onde as baterias se encontram, lá no fundo, iluminada por uma
lânguida fagulha de luz morfética. Charlie não precisava de solos. Charlie era
o jogador que joga para o time. O Makélélé dos “galácticos” do Real Madrid.
Manejava brilhantemente o ritmo cardíaco de outros três velhos que já também
cada vez estão mais íntimos do pórtico dos octogenários. Charlie era o perfeito
gentleman inglês. Entre tantas histórias, certa vez passou longo tempo brabo
com os demais membros, pois estes tiveram a ideia de tocar vestidos com roupas
em farrapos. Charlie, acostumado a ternos impecáveis e até a cartolas de lorde,
disse ter se sentido mal durante todo o show e que não via a hora de que
acabasse.
Arriscaria a
dizer que Honky Tonk Women é sua melhor performance e até, com pedido de
perdão antecipado, diria que, em Gimme Shelter, o pacato Charlie clama
um pouco por mais atenção.
Independentemente
do gosto de cada um, considero impossível, pela trajetória e pela incrível
atualidade, que os Rolling Stones não sejam considerados os maiores artistas da
história contemporânea. Mais de 50 anos de carreira e uma sobrevivência a todas
as mudanças que nosso planeta e sociedade sofreu durante todas essas décadas.
Tristemente,
somente a morte tem me feito dedicar o meu pouco tempo a escrever. Bebês também
nasceram nesses últimos tempos, mas, por algum motivo, a morte para mim é algo
mais inspirador para a escrita. Quem morreu viveu e dá mais argumentos para
serem postos em um papel virtual. A morte de Charlie e o iminente fim de um
patrimônio vivente da humanidade gera essa sensação de fim de ciclo, fim de
época, fim de era. A partida de Charlie, assim como a de Maradona, confirmam a
óbvia impossibilidade de driblar a morte, seja com a perna esquerda ou com duas
baquetas localizadas atrás de outros três rolling stones. Tudo perece.
Infelizmente de tempos em tempos temos a confirmação da inexistência do
infinito, do imortal.
“Se seguirmos
poluindo o planeta dessa forma...que mundo deixaremos aos Rolling Stones?”
“No caso de
uma nova bomba nuclear, só sobreviverão baratas e os Rolling Stones.”
Infelizmente
são apenas piadas que já, infelizmente, vão perdendo a graça devido à crua
fragilidade do ser humano. Descanse em paz, Sir Charlie Watts e torne o lugar
para onde foste um recinto mais elegante e humilde, comprovando que esses dois adjetivos
podem conviver. Charlie sempre foi elegante e humilde e será, eternamente, um rolling
stone.
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