Sou uma pessoa nostálgica. Extremamente. Xiita. Não sei se foi o passar do tempo, obviamente concomitante com os anos que vamos todos empilhando em nosso currículo/imaginário que também possivelmente foi agudizado com os tantos anos morando fora, não por opção, mas por armadilhas do coração com perdão pelo momento/expressão digno de uma pouca original canção de Fábio Júnior. O fato é que sou nostálgico e me impressiona como os demais podem não o ser.
Nunca em minha vida escutei Belchior. Até
alguns anos atrás era apenas um artista que sabia que havia existido. Passou de
ser um artista que habitou esse planeta há algumas décadas a ser um artista de
bigode e, hoje em dia, fiquei sabendo sobre o final pouco ortodoxo de sua vida.
Não saberia citar o nome de nenhuma composição sua sequer. No entanto, através
de meu intenso e incansável desejo de aprender/conhecer, li sobre sua vida.
Belchior, li, escreveu inúmeras músicas. Em uma
coluna que li, algumas letras foram reproduzidas. Letras que aguçaram a já
aguda necessidade minha de estar, ficar em um passado que já não existe mais.
Voltar. Nunca as escutei e, nesse exato momento, lutando contra a instabilidade
de minha internet em um dia chuvoso e solitário, decidi colocar, pausando e
freando o meu cada vez mais pesado e preguiçoso estímulo para colocar
pensamentos que gostaria de ver escrito para, passados alguns outros anos e
décadas, quando essa nostalgia estiver ainda mais lancinante, minha memória
mais desgastada e as pessoas da minha vida cada vez mais abstratas, poder ler e
lembrar.
Após escutar um pouco de Belchior, menciono
outra obra que passei quase quatro décadas sem dar valor: O Portão. Minha avó
sempre foi fã do rei, mas a frivolidade da infância e a rebeldia/egocentrismo
da adolescência jamais me permitiram parar e não somente ouvir, mas também
escutar a mencionada canção. A letra fala basicamente do momento de voltar,
voltar fisicamente a um lugar que sempre foi seu. Mas não terá sido o seu
somente no passado. Será, sempre, o seu. A letra, ao mesmo tempo, instiga a dor
daquele que quer voltar não ao lugar, mas à época e isso é impossível.
A cada vez que volto para Porto Alegre,
religiosamente uma vez por ano, sinto que, dentro de minha intenção, volto
porque quero voltar a algo mais do que somente ao lugar que já tampouco existe
mais. O portão da casa de meus avós hoje em dia é um muro de mais de dois
metros de altura e a grande maioria dos lugares que eram importantes para mim
já não existem mais ou estão tão modificados que deixaram de ser esses lugares.
Voltar é um desejo fácil, mas impossível, porque o que se quer já se esconde
timidamente em nossos imaginários.
Durante minha adolescência tinha o hábito de
gravar coisas: programas de televisão, jogos de futebol, shows, entre outros.
Gravava-os em fitas VHS. Quando me mudei de minha saudosa casa de Ipanema,
joguei todas as fitas fora, pois o saber que todos esses materiais estão a um
clique de meus olhos, julguei que seriam somente objetos a ocupar espaços. A
única fita que guardei foi a da minha formatura do colégio em 1999. Sempre
achei que tinha sido 1998, não sei por quê. Tinha assistido uma vez apenas e foi
quando me entregaram, ou seja, no mesmo ano da formatura. Sempre a mantive aí,
pois tinha a ideia de digitalizá-la e voltar a ver. Felizmente demorei tanto
tempo para voltar a assistir. Durante a quarentena descobri uma livraria que
fazia o trabalho de digitalizações e, finalmente, pude ver outra vez. Digo
felizmente, pois o tempo decorrido fez com que essas imagens, essas
personagens, se tornassem ainda mais fictícias, distantes e fantásticas ao
mesmo tempo.
A primeira parte do vídeo mostra alguns dos
formandos e outros convidados sentados à beira da piscina da minha ex-colega
Camila Trindade. Lembro como se fosse hoje. Observo as expressões de todos como
se fosse um adulto observando um grupo maravilhoso de jovens. Não há áudio na
grande maioria dessas filmagens iniciais. No lugar do áudio local, soavam
canções da época como Mmmbop do Hanson. Daria o que fosse para saber sobre o
que falávamos, sobre o que conversávamos naqueles momentos, o que passava por
nossas cabeças que juravam que muito sabiam, mas quase nada sabíamos.
Ao observar as imagens fui percebendo algo
difícil de encontrar em qualquer grupo humano, mais ainda em tempos de divisões
que fazem com que pessoas percam amizades por defender ou criticar esse ou
aquele político, pessoas essas que nem conhecemos. O meu grupo era conformado
por pessoas muito diferentes entre elas. Obviamente havia colegas com mais
afinidade com esse ou aquele, mas todos, sem exceção, sentiam um carinho,
respeito, admiração, afeto pelos demais. Nosso grupo era pequeno. Como nós bem
dizíamos, estudávamos numa casa. O Saint-Exupèry, tão criticado por nós em
épocas que tínhamos certeza de tudo saber, foi o melhor colégio que eu estudei.
Enquanto alguns pensavam que mais disciplina e intensidade acadêmica eram
necessários, eu cada vez mais confirmo que o clima relaxado do nosso colégio
seria o que eu gostaria para um filho caso filho tivesse. A vida adulta é
suficientemente longa e recheada de preocupações, aflições e dificuldades. Para
que transformar esse período mágico e irrepetível em um prelúdio da vida de
responsabilidades?
Quanta amabilidade, quanto companheirismo.
Mesmo colegas que não eram muito próximos a mim eu guardo, até hoje, um imenso
carinho. Pouca relação tive com a Ana Trevisan, por exemplo. No entanto, o que
guardo dela como o que ficou foi SEMPRE me cumprimentar pelas manhãs com um sorriso e um gesto amável. Além disso sua beleza sempre me
impressionou e dizia a amigos de fora da escola que estudava com uma das gurias
mais lindas desse mundo. A Débora também não era a pessoa mais próxima a mim.
Lembro de minha surpresa quando esta foi receber seu diploma ao som de uma de
minhas bandas favoritas. Não sabia que ela também gostava de The Doors, mas, se
tivesse que associar um adjetivo à Débora, este seria bondade pura. Mário
Fabretti, outro que não era dos meus amigos mais próximos, mas é outra pessoa
que sempre tive um enorme respeito e um grande carinho. Querido por todos,
pessoa boa, lembro de uma vez em que o encontrei com a roupa manchada de sangue
na esquina das escadas do colégio. Seu olhar assustado apenas me desferiu uma
frase: “Peruca, caguei, que merda, caguei”. Nunca esqueci. Minutos depois
descobri que ele tinha acabado de dar uma surra num pobre adversário que não
lembro quem era. Lembro que usava piercing no nariz e isso causou o sangue
excessivo. Acontece.
Talvez três integrantes do nosso grupo poderiam
ser considerados os pilares do grupo: Mariana, Tolotti e Daniel. Entre tantas
pessoas espetaculares, esses três se sobressaíam. Os três estavam há muitos
anos no colégio. Mariana era das pessoas de melhor coração que conheci, produto
de um pai e mãe que eram pessoas ímpares. Lembro do seu Geraldo, mas
infelizmente minha memória me fez esquecer o nome da mãe. Pessoas sensacionais
que colocaram no mundo uma menina excepcional. A Mariana era a doçura em
pessoa, amiga de todos. A nossa Gabriela Tolotti, com uma personalidade bem
diferente à da Mariana, também tinha esse talento de circular por qualquer
grupo, de agregar, se interessava por tudo e por todos. E, por último, o meu
grande amigo Daniel Freitas, um guri brilhante que não me surpreende que
atualmente é um grande médico, algo que ele queria desde a infância enquanto os
mais inconsequentes como eu nem ideia tinham do que se tornariam. Lembro de
desenhar mapas na mesa dele e explicar a localização no mapa dos estreitos de
Bósforo e de Dardanelos. Por quê? Porque ele se interessava por tudo e talvez
era um dos poucos temas que faltava que falássemos a respeito.
Tivemos também marinheiros que chegaram quando
o barco do segundo grau já havia zarpado. A enigmática Laura Chaves que, certa
feita, quando a encontrei entre o banheiro e a porta da sala me pediu o favor
mais pouco ortodoxo que já me pediram e que me pedirão em toda a minha vida:
que se eu poderia amarrar-lhe os cadarços. Nunca perguntei por que a dona Laura
me pediu isso, mas me abaixei e os amarrei para o deleite do meu GRANDE amigo
Frederico Bitola que, até hoje, volta e meia traz à tona esse ocorrido. Contei
a minha esposa certa feita essa história. Ela ouviu e perguntou se eu tinha
amarrado os famosos cadarços. Respondi que sim e recebi um “muy bien” como
resposta.
A originalidade do Saint-Exupèry pode ser vista
em sua, nossa, cerimônia de formatura. Sem regras, sem padrões, sem requisitos.
Eu de jeans e camiseta e ao meu lado o Tiago de terno. A cada um que era
chamado ao muro de fuzilamento, gritos e chacotas pululavam sendo o nosso Varginha e PH talvez os mais ovacionados. A palavra “bullying”
ainda não existia. Enquanto o hino tocava eu cutucava a Dani que estava à minha
frente e falava alguma estupidez com outro ser fantástico que tanto enriquecia
esse grupo, o nosso Chileno. Há dois metros de distância estavam o Daniel e a
Laura enquanto o nosso saudoso Caio falava de nossos futuros. Quem diria que
essa dupla terminaria casada e com filhos? Essa jogada do destino terá sido
imaginada por algum dos meus colegas? Ou por eles mesmos? Outro de meus grandes
amigos, Gustavo Szuster, que suava ao ter que apresentar um trabalho em frente
ao grupo e aos professores, hoje é ator bem como o já citado Bitola que decidiu
fazer o terceiro ano em outra instituição, pois dizia que jamais iria passar no
vestibular se seguisse no Xupetas. Era gozado por mim e Silvio por querer ser
alguém na vida, por querer ter sucesso.
Durante toda a minha vida admirei vários
professores e alguns deles estavam lá presentes, homenageados e homenageando.
Celso Tatão, que até hoje deve lamentar ter sua
vida cruzada com a da Dani, o já mencionado Caio, a Genciana que oferecia a mim
e a meu séquito de colegas dementes Carol, Taís, Grazi, Lulu e Dani chazinho
com bolachas e também o mais novato de todos, Fabrício, o professor de física
que apareceu do nada e era mais um amigo de todos do que um maestro. Até hoje
guardo o cartão que ele me entregou durante a formatura e é das pessoas que
jamais vou esquecer. Impossível também esquecer o carrinho assassino dele em
plena cancha de cimento durante um jogo das olimpíadas do colégio, da casa.
Tristemente esse grupo, o último grupo de amigos
que realmente tive na minha vida, foi se esfacelando. Ao mesmo tempo em que
mantive contato com alguns, perdi totalmente o rastro de outros. Todos terão
seguido com suas belas índoles? Terá a vida adulta modificado um pouco a
essência dessas pessoas ou essência humana não perece com o cruel e implacável
passar do tempo? O que terá restado daqueles jovens nos quarentões atuais? Serão
esses vestígios tão significativos como os que em mim ficaram soldados no meu
ser? Os que nunca mais voltei a ver ficaram com essa imagem de eternos Peter
Pans em minha mente. Que dolorosa vontade de saber da vida de todos eles e que desejo
irreal de que todos sigam sendo parte da minha vida. Lembro de sentir falta de
todos durante as longas férias de verão.
Naturalmente entendo que esse é o ciclo da
vida. Somos e temos etapas. Sei que as famílias que meus colegas constituíram
são muito mais importantes do que um saudoso ex-colega. No entanto, não consigo
relativizar a força da amizade e, podem me criticar,
não há amizade depois de findada a juventude. Falando com um colega um dia
desses disse que deveriam existir duas palavras diferentes para expressar essa
relação quando surgida na infância/adolescência e depois já na vida adulta. Meu
grande amigo Bruno. Seguimos amigos muito próximos depois de findada a vida
escolar, dormia seguidamente na casa dele, éramos parte do mesmo time de futsal
do bairro, considerava a sua mãe como uma segunda mãe para mim e hoje pouco sei
dele; não conheço a sua filha, por exemplo. Culpa minha? Culpa dele? Não, culpa
desse enigmático fator infindável e incansável chamado tempo.
Pausava o vídeo seguidamente. Vi todos os meus
colegas. Vi a dona Mirtes brilhando no meio da audiência. O nosso Xupetas era
tão informal e único que nem passou pela minha cabeça convidar os meus pais
para irem à formatura. Fui sozinho como se estivesse indo para um churrasco com
meus amigos. Lembro que meu tio estava na minha casa e, como ele morava na Vila
Assunção, perguntei se, quando fosse embora, poderia me deixar na Sociedade de
Engenharia. A reação dele foi: jogo de futebol? E eu respondi: não, uma festa.
E já que falei em segundas mães, não poderia deixar de destacar a presença de
dona Mirtes, outra de minhas poucas segundas mães que essa vida me deu, uma das
três apenas para que ela não pense que esse título é, de certa forma,
“vulgarizado” pelo seu rebento. Lembro do Serjão, pai do
Bruno, do Biba bem novinho ao lado do orgulhoso seu Marcelo que foi o único
genitor que foi até a frente fotografar/filmar sua filha no momento de receber
o diploma por talvez suspeitar de que isso talvez jamais acontecesse. Que grandes pessoas tive a honra de conhecer e de conviver e uma
pena que, nesse meu último recurso de maltratar a minha nostalgia não estavam
presentes alguns membros por diferentes motivos: Chico, que uma vez fugiu de
uma aula de geografia saindo pela janela; Carioca, que uma vez me disse que eu
era o mais difícil de marcar nos nossos jogos na quadra verde do colégio; Lulu
que uma vez, em parceria com a minha amada Carol, me escreveu uma carta de
arrependimento, pois me negou uma bolacha; Cecin, grande figura dessa camada
que chegou de colégios mais exigentes da zona sul assim como a Patrícia Balestrin, das pessoas mais humanas e queridas que já conheci e o Arthur; Roman, o Giuliano, Trentini,
Carol, Grazi, Celso, Lipe, Celso, Koucher, Xanda...onde andariam? E a Camila? Cedeu a casa, era membro
do comitê organizador da formatura, por que não recebeu o diploma conosco?
Viajei o mundo inteiro e sempre tenho uma
próxima viagem sensacional preparada, mas trocaria qualquer destino por um dia
com meus colegas. Enquanto a maioria das pessoas quer ainda descobrir o mundo,
eu só quero voltar à Zona Sul, àquele nosso mundinho simples e fácil, àquele
mundo limitado composto de Exupèry e Zona Sul, ir da casa de um para a casa de
outro. Eu voltei e volto todos os anos. A Zona Sul é a minha Passárgada, mas o
lugar que eu quero voltar é impossível. Não é um espaço físico e sim um estado
de espírito, um tempo, um imaginário. Por isso, em meio à tanta alegria quando
vou a Porto Alegre, alegria essa causada por rever pessoas que amo sempre é açoitada por uma aguda, mas controlável tristeza, tristeza essa causada
pela repetitiva confirmação de que o que quero é impossível, mas eu sigo
tentando. Eu sigo voltando.
É difícil dizer qual é meu filme favorito, mas
talvez “Conte comigo” o seja. Cada vez que o vejo, ao final, quando o narrador
termina sua carta, uma lágrima às vezes física outras vezes imaginária escapa
de meus olhos. E a frase que ele acrescenta ao final dizendo que jamais teve
amigos como os de sua infância é a maior verdade que pode existir. Ditatorialmente
afirmo que a Camila jamais terá uma amiga como a Ana, que o Beto jamais terá um
amigo como o Chico, a Débora jamais encontrará alguém como o Mário ou a Lulu
tampouco encontrará alguém como a Trentini. Não há amigos como os amigos dessa
época. Eu jamais voltarei a encontrar pessoas como os meus amigos do Xupetas.
Um comentário:
Bahhhhh, meu sobrinho amado, nostálgico, xiita, lindo e um dos homens mais inteligentes que conheci na minha jornada terrena. Como te entendo...nossa... E, SIM, AMIGOS DA INFÂNCIA NÃO POSSUEM SUBSTITUTOS! Mais um texto teu para nosso deleite! Te 💜
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