Não tenho o hábito de mandar felicitações públicas, mas também jamais critiquei quem o faz. De certa forma, é uma possibilidade de unir pessoas ao redor de um acontecimento que pode ser importante para um pequeno coletivo de pessoas. Em épocas pandêmicas ou devido à distância geográfica, funciona como uma alternativa à ausência do estar junto.
Minha vó não tinha
um smartphone e muito menos redes sociais. No entanto, frequentemente meus
textos chegavam às suas mãos. Havia, lá fora, um exército de agentes que os
encontravam e os filtravam para saber se cumpriam requisitos para causar
interesse a essa leitora. Algumas vezes meus textos foram impressos e entregues
para regozijo desta.
Qualquer
coisa que eu escrevesse ou produzisse, muito provavelmente seria de interesse
de minha vó. Eu não escrevo e nunca escrevi para ser lido. Escrevo porque gosto
de ler meus pensamentos e opiniões. Mais ainda quando é depois de algum período
relevante ter transcorrido. Deparei-me, algumas vezes, com textos que escrevi
há bastante tempo e é sempre curioso ver as temáticas outrora abordadas e as
sutis mudanças de opiniões. Mas, se estivesse em busca de reconhecimento e
admiração, minha vó seria a leitora escolhida. Certamente, apesar de admirar
muitas outras pessoas e por diferentes motivos, ela é a pessoa que mais me
admirou em toda a minha vida. Sempre me colocou em um pedestal que eu, nem
ninguém, teria os méritos suficientes para estar. Certa vez, com certo receio,
me disse que achava que eu era gay por ser tão bonito. Não era por um
comportamento afeminado que acredito que jamais tive; senão por eu possuir um
excesso de beleza. Sou tão bonito assim? Os gays são mais bonitos que os
heterossexuais? Eu responderia que não às duas indagações, mas esse era o
raciocínio dela e quem sou eu para tentar encontrar a lógica que poucas vezes,
ou quase nunca, essa vida nos oferece.
Há um mês foi
o aniversário de 87 anos dela. O último.
Diferentemente
dela, talvez jamais tenha dito o quão bonita ela era. Desde a sua juventude até
cada vez que voltava a vê-la em minha tradicional visita anual. Havia
diferenças de beleza com o passar das décadas, mas ela sempre estava. Minha vó
tinha 49 anos quando eu nasci, não muito mais do que o número de anos que eu
tenho agora. E, considerando que não fui o primeiro neto, ela já detinha o
título de avó desde a metade de sua quarta década de vida. Lamento
profundamente essa nova tendência de ter filhos mais velhos que impera
atualmente. Evidentemente tem inúmeras vantagens, mas os pais atuais privam
seus filhos da melhor das relações que eles poderão ter em suas vidas que é a
relação neto-avós. Sinto-me muito abençoado por ter tido a chance de, apesar de
não ter conhecido dois de meus avós, poder ter convivido com uma intensidade de
tempo/sentimento invejáveis com os dois que eu tive. Histórias juntas não
faltam e jamais serão esquecidas.
Minha vó não
poderia ser definida como a típica senhora que adora a tudo e a todos. Não vou
ser manipulado pela dor recente e dizer que foi a melhor pessoas que já
conheci, posto que ocupa a minha tia Thaís e a Dinda. Minha vó não gostava de
cachorros, gatos ou de crianças, sim, de crianças. Seguidamente repete que
crianças como os seus filhos e netos jamais existirão sequer parecidos. Será
verdade que, entre 7 bilhões de seres humanos que já foram ou seguem sendo
crianças que habitam esse planeta, fomos as únicas crianças com méritos suficientes
para serem queridas? Como ela não gostava muito de ser contrariada vou ter que
concordar sempre lamentando um pouco não ter dado um bisneto a ela para que
esse grupo exclusivo de cinco pessoas fosse inchado um pouco mais. Porque
claro, se o filho fosse do Eduardo...
Era, sim, uma
pessoa que, com o seu ciclo próximo, se tornava a melhor pessoa do mundo.
Tínhamos
muitas coisas em comum. Jamais brigamos. Ela nunca me criticou em toda a vida e
foi sempre a pessoa que mais me mimou. Sempre que ela não gostava de algo que
eu admiro, tentava passar a gostar ou relativizava. Tinha pavor ao som de
guitarras, mas, quando mostrei meus vídeos e fotos dos shows dos Rolling Stones
em que fui, ela suavizava dizendo, timidamente, que não gosta “muito” da
música, mas que, apesar de serem muito feios, entram na galeria de
“fantásticos” dela.
Nunca
dediquei um texto exclusivamente a ela. Nem a ninguém. Arrependo-me agora que
ela não está mais entre nós? Em absoluto. Poderia me arrepender de qualquer
coisa em relação a ela? Jamais. Na visão dela fui perfeito e ela sempre foi a
minha vó, com seus defeitos, pois eu sim, numa audácia juvenil, os via, mas sempre
desfrutamos o fato de estarmos juntos, seja ela me carregando no colo ou nós,
há um ano e meio atrás, vendo juntos, lado a lado, algum jogo de futebol. Com
certeza hoje meu irmão e amigos entenderão minhas negativas de dormir em suas
residências. Meus dias com ela eram poucos e a vida, de certa forma, a cada
nova ruga, ia avisando que isso não duraria para sempre. Eu apenas fazia de
conta que não entendia as mensagens, mas, no fundo, as registrava. E as temia.
Há alguns
anos, em uma de minhas visitas anuais, a convidei para ir ao cinema. O filme
era “La piel que habito”. Convenci-a a ir argumentando que o ator principal era
o Antonio Banderas, um de seus “bonitões”. Sabia apenas isso e que o diretor
era o Pedro Almodóvar. Para mim isso era suficiente. O que não sabia era que o
filme era bastante mais pesado do que eu poderia imaginar. Não costumo
pesquisar muito sobre os filmes antes de vê-los, ainda mais sendo filme do
Almodóvar em quem eu confio no taco. Excelente obra, mas que só consegui
desfrutar plenamente quando voltei a ver. Durante a sessão somente pensava no
que estaria passando pela cabeça dela. Ao final, acenderam-se as luzes, ela me
olhou, sorriu e disse: “É...uma loucura, mas bom hein?”
A vó era algo
perdido entre o samba e o tango. Uma ponte aérea entre o Rio de Janeiro e
Buenos Aires. Tinha sua malícia carioca que se emaranhava com seu dramatismo
porteño. Maliciosamente um dia me disse: tu sabes tudo, deves saber isso
também...por que o Messi, após cada gol, aponta para o céu? Eu, obviamente,
sabia e, para quem não sabe e não quer perder tempo googleando, ele dedica
todos os seus gols à sua falecida avó que não chegou a vê-lo jogar
profissionalmente. Que perda. Para o Messi.
Que queria a
dona Beatriz conseguir com essa pergunta? Em um momento de corporativismo de
avó queria reconhecimento para o poder inigualável que essas têm para com os
seus netos?
Disse a ela
que, se ela quisesse, eu poderia começar a dedicar todos os meus gols no videogame
e nos meus jogos de domingo a ela. Como sempre, modesta, disse que eu deveria
era dedicar os gols à Marcela.
Dedicar meus
gols jogando FIFA ou os que faço jogando aos domingos seria pouco. Pouco para a
magnitude dessa pessoa. Uma pessoa que sempre esteve ao meu lado em todos os
momentos sendo a pessoa mais estável da minha vida. Os gols “um pouco” mais
importantes que o Messi dedica à sua também devem ser pouco. Pessoa que passava
horas a fio me fazendo massagens e cafuné. Quando as articulações das suas mãos
se engrunhiam eu apenas dizia “continua...” e lá ia ela outra vez.
Ela me fez,
sempre, ter a certeza de que eu era o neto favorito, mas, hoje, passados os
anos, suspeito que ela, com sua malícia carioca e sua dramatização porteña, fez
com que os outros dois sentissem a mesma coisa. A cada visita minha ela
perguntava, cerca de seiscentas vezes ao meu irmão a data exata da minha
chegada. Anotava em seu caderno telefônico com mais pessoas mortas que vivas e,
mais ou menos dois meses antes, começava os preparativos. 15 ambrosias, em
média, eram feitas e devoradas pelo tio Zé até a minha chegada.
Transformava
os meus inúmeros defeitos em qualidades e, do alto de sua humildade, sempre
atendia as minhas ligações em seus aniversários, até o último, dizendo: ah
Dudu, tu nunca esqueces! Como seu eu pudesse ter o direito se esquecer. Eu era,
talvez, a pessoa que ela mais admirava nessa vida, ou pelo menos isso ela me
fazia perceber. Entre todas as personalidades que ela alcunhava de
“fantásticos”, eu parecia ser o mais de todos sendo um dos motivos para tal
título algo tão pequeno como sempre ligar para ela nos seus aniversários. Essa
era a lógica dela, e não julguemos a lógica dos demais já que, uma das
preocupações dela era que, se a humanidade seguisse falando tanto em
dinossauros e fazendo tantos filmes sobre isso, esses “bichos nojentos” algum
dia iriam voltar. Questão de lógica.
A distância
da Bea sempre foi a maior dificuldade minha em morar longe. Pensei que ter
morado na Inglaterra ou viajado para a Nova Zelândia seria o mais longe que eu
poderia estar dela. No entanto, agora, estamos mais longes do que nunca. Ou
mais próximos? O avião e a viagem desgastante não são mais necessários. Agora,
quando quero falar com ela, simplesmente penso nela. Vejo suas fotos e lembro
de histórias que, felizmente, serão suficientes para mais tempo do que eu
passarei por esses lados.
Assusta-me
apenas ser igual a ela e marejar os olhos a cada vez que falava de seus pais,
mortos, obviamente, há décadas. Gostaria de ter a fé do Messi e poder acreditar
que ela está aí em cima de olho no que o “guri impossível que não perdoa e que
sempre está pegando no meu pé” anda fazendo.
Incomodei
muito a Bea. Desde boladas de propósito na janela dela para assustá-la até as
tais pegações no pé que ela sempre, feliz, mencionava. Como dizia a minha mãe,
enquanto mais o Eduardo “toreia” ela, mais ela gosta, que nem era com o tio
Ayrton”. É verdade. Muitas vezes ela vinha e me contava, de frente, algo que
fez e que sabia que eu ia pegar no pé dela. Gostava.
Descanse Bea,
já nunca mais vou pegar no teu pé. Apenas te critico pela última vez por me
ensinar o significado da palavra “nunca” de uma forma tão abrupta. Poderias ter
me esperado. Ou essa praga poderia ter escolhido outro ano para dar o ar da graça.
Seguirei com
a tua imagem caminhando no calçadão entre os teus dois irmãos enquanto eu
passava correndo e gritava qualquer coisa. Ou, voltando mais no tempo, vendo tu
brigando com as abelhas ao colher cachos de uva de nossa parreira para baldes e
mais baldes de suco ou para cucas, sem caroço de uva porque, senão, o Dudu não comia.
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