sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

El Diego

 



2020 foi o pior ano para a humanidade desde que eu me conheço por gente. Falando de mim, a pandemia não me causou problemas maiores, ainda mais se me comparo com outras pessoas que enfrentaram inúmeros problemas. Mas, igualmente, 2020 foi o pior ano da minha vida, não pelo coronavírus senão pelo falecimento de minha vó e, também, pela morte del Diego.

Sempre disse que jamais tive ídolos. A palavra ídolo faz parte da família de outras palavras como “idealizar”, “ideal” e eu considero idealizar algum ser humano um erro e considero que o adjetivo “ideal” é demasiadamente aberto a interpretações. Consequentemente, afirmo que jamais tive ídolos.

Maradona foi, talvez, o mais próximo de um ídolo para mim. A minha “relação” com el Diegote começou na infância quando o amor pelo futebol começou a despertar em mim devido à influência do meu pai e, também, em menor escala, do meu avô.

A primeira Copa do Mundo que tive noção da existência foi, talvez, a pior de todas as copas do ponto de vista técnico: Itália 1990. Eu estava recém tentando entender como aquele mesmo jogo que eu jogava com meus amigos no pátio da escola e com meu pai e irmão no corredor do nosso apartamento poderia ser algo tão maior e inimaginável. Meu pai, sempre disposto a explicar seja qual fosse o tema para mim, era a minha única fonte de informações. O que ele dizia eu encarava como um dogma. Meu pai, naquela época, me falava basicamente de dois jogadores: Romário e Maradona. Eu, ingenuamente, tinha Valdo, craque do Grêmio do final dos anos 80, como o limite de destreza futebolística de um jogador profissional. Sinceramente, aos oito anos de idade um jogo de 90 minutos parecia-me eterno e não conseguia manter a atenção por muitos minutos seguidos. No entanto, sabia do talento de Valdo.

O Romário e o Maradona são tão bons como o Valdo? Meu pai apenas ria e, com paciência, tentava explicar que eram outra coisa, outro patamar. Dizia meu pai que Romário era o melhor de todos e que estava feliz que este não chegaria em forma ideal à copa já que meu velho sempre secou a seleção brasileira e temia o extremado talento do baixinho. Quando eu questionava sobre o outro baixinho, o rebelde, polêmico, extravagante, do país vizinho, meu pai apenas dizia: não, esse é outra história, é realmente o melhor que eu já vi, navega por outras águas.

Quem era Maradona? Era um então jogador do Napoli que fazia com que meu pai, na época com não mais de cinco canais, ligasse a televisão todos os domingos de manhã na Bandeirantes para vê-lo jogar. Eu olhava de soslaio e não achava muita graça, mas igualmente a atração por aquele simples jogador começava a me intrigar. Lembro que me chamava a atenção como el Diego apanhava.

O primeiro jogo de futebol que eu lembro onde tê-lo visto foi na sala dos meus avós em Ipanema em uma televisão vanguardista para a época. Lembro perfeitamente que vi apenas flashes do jogo que, repito, ainda não conseguia manter-me atento por muitos minutos. Tinha coisas melhores para fazer na imensidão do pátio de Ipanema numa tarde de domingo, último dia de meus tradicionais fins de semana com os saudosos avós. Provavelmente estava também a minha prima, meu irmão, ou seja, havia coisas mais interessantes para fazer do que aguentar 90 minutos com minhas energias em marasmo.

A Argentina ganhou. 1x0, gol de Caniggia. No entanto, poucos falavam de Caniggia e muito menos do Valdo que jogou essa copa e esse jogo. Os adultos da minha família apenas falavam de Maradona e de Dunga. O segundo por não ser capaz de parar o primeiro nem com falta e o primeiro, bem, o primeiro...todos falavam da tal jogada.

Demorei mais de uma década para ver a tal jogada. Na época, não seria necessário dizer, não havia muitas opções para ver um gol, uma jogada. Ou assistiam-se os programas esportivos ou jamais se poderia ver o que fora perdido ao vivo. Não vi. Passaram anos. Lembro vivamente do meu constrangimento quando escutava comentários sobre a jogada. Menti. Disse que havia visto. Não poderia ser o único que não tinha visto.

Em toda essa década, pensei nessa jogada. Como teria sido? E o autor, quem é? Quem era Maradona?

Jorge Valdano uma vez disse: “o futebol é a coisa mais importante das coisas menos importantes”. Os meus quatro leitores sabem do meu fanatismo por futebol. A falta de concentração para seguir 90 minutos de bola rolando hoje podem ser três ou quatro jogos no mesmo dia. Submeti-me a uma operação desnecessária para poder voltar a chutar uma bola. O futebol é a coisa mais importante entre as menos importantes da minha vida.

Nem todos sabem quem era realmente Diego ou melhor, o que era. Escutei comentários manifestando surpresa pelo que sucedeu depois de sua morte, mais especificamente nas ruas argentinas e nas de Nápoles. Para mim Maradona foi a maior personagem da história. Exagero? Talvez. Mas alguns fatos tornam a minha afirmação algo menos descabido do que parece. Algum Beatle disse que a banda era mais famosa que Jesus Cristo. Pois Diego é mais famoso que os Beatles e, por muitos, mais adorado que Jesus Cristo.

A Copa de 1994 me pegou em uma época onde eu, aos meus 12 anos, jurava, de pés juntos, que nada era mais importante que futebol. Caso perguntado à época sobre a afirmação de Valdano, o teria corrigido afirmando com a típica audácia infantil que o futebol era a coisa mais importante e ponto final. Desde 1994 eu vejo todos os jogos de todas as copas. E foi nessa copa que reapareceu aquele ser que tanto me intrigava: Maradona.

Meu pai, aos poucos, ia me contando sobre as peripécias da vida de Diego. Quando fiquei sabendo que ele estaria na copa de 1994 me surpreendi: ingenuamente achei que era apenas um jogador de futebol que havia desaparecido e que voltava para dar o seu último susto como um fantasma de filme de domingo à tarde. A seleção argentina de 1994 era, disparada, a melhor do certame. Do meio para frente jogava com Redondo, Simeone, Caniggia, Batistuta, Balbo e...Maradona. Sim, com a 10. Poderia, enfim, vê-lo jogar já entendo bastante mais do jogo e da personagem em questão.

Enquanto Maradona esteve na copa, vivi em êxtase tamanha qualidade. Dele e do resto do time. O gol contra a Grécia. A jogada. A definição de Diego. O grito furioso para as câmeras. E, vale salientar, que Maradona ainda era um jogador de futebol para mim. O melhor, mas apenas um jogador. Humano. Fiquei destroçado com o desfecho da história e minha tia Tânia me consolou me dando uma camisa da Argentina que mandei para uma costureira amiga da minha vó bordar atrás “MARADONA”. Guardo-a até hoje.

Passaram mais anos e meu interesse pela figura Maradona, pelo mito Maradona, pela lenda Maradona foi aumentando diretamente proporcional à evolução tecnológica que me permitia ver e saber mais sobre sua vida. Apareceu a televisão a cabo e consequentemente os canais argentinos. E, em seguida, a internet.

Passei a ser um “historiador” do mito Maradona. Hoje, já passados mais de vinte anos da copa de 1994, posso dizer que sei muito sobre a vida do mito. Tudo, impossível. Mas sei o bastante para me impressionar com a grandiosidade de um ser humano que de humano tinha tudo e muito pouco.

Desde a morte de minha vó e de Maradona, todos os sonhos que tive e posso lembrar contavam com algum dos dois ou ambos envolvidos, pois, como alguns sabem, minha avó também me acompanhava nessa admiração por Diego. O que gerou Maradona jamais outro ser humano foi capaz de gerar. Num país tão católico como a Itália, milhares de pessoas peregrinavam à casa de Diego em cima de uma colina em plena noite de Natal empunhando taças de champanhe para brindar com ele que, por sua vez, aparecia na sacada da casa, brindava e lançava panetones.

Maradona era tango, era o pibe sem regras, imparável. Poucos sabem, mas a primeira Ferrari preta foi produzida para ele. O conservador Enzo Ferrari, fundador da empresa, quase agrediu o empresário de Diego quando este disse que o então campeão do mundo e 10 do Napoli queria uma Ferrari, mas que tinha que ser...nera. Como era para Diego, Enzo cedeu.

Em uma excursão à África, ao aterrissar na Costa do Marfim, ouviu-se um barulho depois de alguns minutos e era simplesmente uma multidão que invadiu a pista e cercou o avião da delegação argentina e tudo isso em uma época pré-internet. Diz a lenda que até em cima da asa havia fanáticos locais ensandecidos.

Em um encontro com o papa João Paulo, há uma foto em que se vê Vossa Santidade em um canto e toda uma multidão fixamente mirando a Diego. E isso não foi o mais absurdo do ato. Ao invés de Diego beijar a mão do papa, o papa beijou a sua mão.

Ao morrer por cerca de dez minutos em Punta del Este, quando voltou à vida, abriu os olhos e convidou o seu amigo e empresário da época Guillermo Cóppola a ir comer um bife à milanesa com batatas fritas para a surpresa de todos os presentes incluindo os médicos que diziam ser impossível que um ser humano voltasse consciente desde o “outro lado”. Vale mencionar a relação de seu amigo que, trêmulo, respondeu: “pero te acabaste de morir, pelotudo!”

Sua filha mais velha um dia lhe comentou que adorava os carros Mini Cooper. No outro dia, no pátio da casa, enrolado em papel de presente estava um Mini Cooper. A menina, em uma mescla de estupor e felicidade lhe disse: “mas pai, eu só tenho 12 anos”.

Quando foi com a delegação argentina jogar um amistoso em Israel, foram visitar o Muros das Lamentações e, pela primeira e única vez, os rabinos ortodoxos abandonaram suas preces e foram vê-lo.

Maradona não tinha regras, não respeitava regras e fazia com que tudo ao seu redor se desprendesse de qualquer norma ou normalidade.

Mito. Maradona, desde os 15 anos, ao mesmo tempo em que se tornou “pai” de toda a sua vasta e miserável família, deixou de ser um humano qualquer com direitos e deveres. Passou a ser algo mais. Enquanto a maioria das pessoas se queixa por ter tido que passar muito tempo trancada dentro de casa durante esse fatídico ano, Maradona viveu uma “quarentena” desde os seus 15 anos quando estreou no futebol profissional dando uma caneta num adversário em seu primeiro toque na bola e, assim, permaneceu até os seus últimos, solitários e tristes dias. Maradona jamais pôde sair de casa. Jamais pôde ir a um restaurante. Maradona morreu sem ter ido ao cinema jamais. Há relatos de que pessoas quebravam as janelas de recintos onde ele estivesse para tocá-lo, vê-lo. Maradona morreu jovem, mas esses 60 anos foram 200 anos, algo demasiado pesado para alguém que era humano e que, ao mesmo tempo em que tinha uma vida artificial e longe do humanismo, uma vez, caminhando em uma pacata cidade suíça acompanhado por um jornalista amigo que inclusive escreveu uma de suas biografias, notou que pouco era importunado. O jornalista, após o comentário do perplexo Diego lhe disse que talvez seria, então, um lugar perfeito para ele morar. Maradona sorriu e lhe respondeu que depois do segundo dia cometeria o suicídio. O apego à fama, à loucura, à vida anormal foi o primeiro vício de Diego.

Sim. Apesar de ser alcunhado por muitos como “Deus”, ter santuários em sua honra e até uma igreja maradoniana, Maradona era mais humano que a grande maioria dos mortais, incluindo os que o veneram. Maradona era generoso, adorado por todos os seus companheiros e pelas pessoas que tiveram a chance de conhecê-lo um pouco melhor. Maradona era sensível, de choro fácil. Maradona não era Deus, era um dos filhos dele: cheio de defeitos; pecador. Tramposo, provocador, contraditório, mulherengo, irresponsável, cedeu a muitíssimas tentações, mordia a maçã com mais frequência que os seus seguidores e difamadores.

Talvez a pior tentação que o perseguiu foi a cocaína. Inúmeras vezes Diego, com um ar nostálgico, com uma mistura de ingredientes como arrependimento, desolação e ternura lançava a pergunta sem resposta: que jogador eu teria sido se não tivesse usado cocaína? E complementava, taciturno: que jogador o mundo perdeu a oportunidade de ver.

Maradona jogou apenas 491 jogos profissionais. Numa busca insana, já consegui ver mais de 300 jogos completos de Diego e sempre digo que ver um jogo completo é um prazer infinitamente maior do que ver apenas lances de sua genialidade. Há poucos dias consegui um jogo dele numa periferia de Belgrado. Chegou aos seus ouvidos que uma família precisava de ajuda para pagar o tratamento de uma criança. O Napoli negou a participação dos seus jogadores nesse jogo beneficente, mas Diego não tinha regras. Foi. Jogou na lama, jogou como uma final de Copa do Mundo e foi mais Diego e mais humano do que nunca.

A relação de Diego com a bola era de amor. Como ele bem disse em sua festa de despedida, “la pelota no se mancha”. Nos seus pés a bola desfrutava, gozava, se retorcia de amor e até dormia. Adorava-o. A discussão de quem foi o melhor é aberta. Gosto cada um tem o seu. Para mim, considerando todas as variáveis possíveis, Messi foi ainda maior que Diego e isso devido à sua constância, trajetória e foco no futebol. Não obstante, tecnicamente falando, esteticamente, saindo do frio da análise pragmática, Maradona foi o que teve a relação mais exuberante com a bola, o que mais a adorou, um dos poucos que a colocou por cima de outras importantes relações da vida de qualquer humano: família, amigos, vida pessoal. Diego contrariava Valdano e punha o futebol como a coisa mais importante de todas e ia ainda mais além: a bola estava no topo de tudo, do mundo, do seu mundo, de sua loucura.

Eu, depois de tantos anos, afirmo que prefiro ainda mais o mito Maradona que o jogador Maradona. Craques sempre existiram e sempre existirão. Como el pibe de oro, jamais; no entanto seguem nascendo, existindo, desfilando. No entanto mitos, bom, mitos, apesar da atual vulgarização do significado da palavra, mitos são raros, aparecem a cada novo século, milênio, vá saber. Sempre fui contra a carreira de Maradona como técnico, pois o colocava sob análise, era exigido, era tratado como um humano, cobrado. Maradona não poderia mais estar entre os mortais com um trabalho de mortais. Maradona estava por cima de tudo e de todos. Não há, na história, alguém que, sempre que abria a boca, deixava uma frase que poderia terminar em uma camiseta, em uma tatuagem. Uma bíblia não seria suficientemente grande para registrar todas as suas frases, suas proezas. O clichê de que todos somos iguais é uma falácia e o mito Maradona ajuda a desconstruir essa ideia errônea.

Mitos morrem? Jamais. Maradona apenas desapareceu fisicamente, mas seguirá eternamente nos imaginários de todos. Teve, felizmente, a despedida mais real e humana que merecia sendo técnico do Gimnasia e sendo ovacionado em todos os estádios argentinos em vida até que a praga moderna resolveu dar as caras e, consequentemente, ajudou bastante a empurrar Diego para a depressão de seus últimos dias. Os tronos que eram instalados nos estádios para recebê-lo se tornaram ornamentos inúteis. Pessoas morrem e se tornam mitos enquanto Diego já gozava de tal título. Finalmente irá descansar dando um golpe duro à infância, aos imaginários de muitos como eu. Diego, nos seus últimos dias sentia falta de seus pais. Sentia uma insana e inatural vontade de ser filho outra vez, depois de tantas décadas sendo o “pai” de seus pais, de seus filhos, de seus irmãos, de amigos e de outros tantos. Maradona já queria morrer.

Minha teoria sobre a figura de Jesus Cristo é polêmica, mas compreendida por muitos. Analiso Jesus do ponto de vista histórico. Judeu, filho bastardo, foi obrigado a fugir de casa para evitar o escândalo. Enamorou-se de uma prostituta. Ganhou a vida como profeta. Tinha a clássica inteligência superior do povo judeu, bom discurso, era bonito, atrativo, gerava fascinação em quem o via. Lutou pelos desprovidos, distribuiu alimentos aos que não tinham. Ganhou inimigos e terminou sofrendo o pior dos castigos. Posteriormente, foi chamado de salvador, algo que nunca entendi. Maradona não foi Deus, longe disso. Maradona foi mais um jesus. Deu alegria a muitos. Lutou pelos excluídos do sul da Itália, ajudou quem pôde, caiu na tentação sem livrar-se, jamais, do mal que, segundo o próprio, sempre esteve dentro dele e somente ele sabia os arrependimentos e dores que queimavam seu interior. Grande orador e possuidor de uma espécie de misticismo que fazia com que sua simples presença paralisasse a tudo e a todos por alguns segundos. E, assim como Jesus Cristo, nos salvou de absolutamente nada.

Maradona queria apenas jogar uma Copa do Mundo e ser campeão. Jogou, ganhou, foi o melhor e fez o gol mais espetacular e o gol mais polêmico de todos os tempos dando uma demonstração de duas de suas principais facetas: o Maradona artista, gênio, Deus; e o Maradona tramposo, pecador, humano, Jesus Cristo.

Apesar de provavelmente nunca ter sido uma pessoa feliz, gera, na maioria das pessoas, graça, arranca um sorriso quando nele se pensa. Até o seu último adeus foi um causador de rebuliços, distúrbios, caos, vide o velório mais imenso, bizarro e dramático da história.

Um beijo eterno de um grande admirador. AD10S.

https://www.youtube.com/watch?v=XwToXtOPsGQ&t=3s

Um comentário:

Ângela Ghizi disse...

Memórias Impagáveis! Parabéns, mais uma vez, pela destreza ao escreveres e ao ballet com os fatos! 🙌🏼❣️