2020 foi o pior ano para a humanidade desde que
eu me conheço por gente. Falando de mim, a pandemia não me causou problemas
maiores, ainda mais se me comparo com outras pessoas que enfrentaram inúmeros
problemas. Mas, igualmente, 2020 foi o pior ano da minha vida, não pelo
coronavírus senão pelo falecimento de minha vó e, também, pela morte del Diego.
Sempre disse que jamais tive ídolos. A palavra
ídolo faz parte da família de outras palavras como “idealizar”, “ideal” e eu
considero idealizar algum ser humano um erro e considero que o adjetivo “ideal”
é demasiadamente aberto a interpretações. Consequentemente, afirmo que jamais
tive ídolos.
Maradona foi, talvez, o mais próximo de um
ídolo para mim. A minha “relação” com el Diegote começou na infância quando o
amor pelo futebol começou a despertar em mim devido à influência do meu pai e,
também, em menor escala, do meu avô.
A primeira Copa do Mundo que tive noção da
existência foi, talvez, a pior de todas as copas do ponto de vista técnico:
Itália 1990. Eu estava recém tentando entender como aquele mesmo jogo que eu
jogava com meus amigos no pátio da escola e com meu pai e irmão no corredor do
nosso apartamento poderia ser algo tão maior e inimaginável. Meu pai, sempre
disposto a explicar seja qual fosse o tema para mim, era a minha única fonte de
informações. O que ele dizia eu encarava como um dogma. Meu pai, naquela época,
me falava basicamente de dois jogadores: Romário e Maradona. Eu, ingenuamente,
tinha Valdo, craque do Grêmio do final dos anos 80, como o limite de destreza
futebolística de um jogador profissional. Sinceramente, aos oito anos de idade
um jogo de 90 minutos parecia-me eterno e não conseguia manter a atenção por
muitos minutos seguidos. No entanto, sabia do talento de Valdo.
O Romário e o Maradona são tão bons como o
Valdo? Meu pai apenas ria e, com paciência, tentava explicar que eram outra
coisa, outro patamar. Dizia meu pai que Romário era o melhor de todos e que
estava feliz que este não chegaria em forma ideal à copa já que meu velho
sempre secou a seleção brasileira e temia o extremado talento do baixinho.
Quando eu questionava sobre o outro baixinho, o rebelde, polêmico, extravagante,
do país vizinho, meu pai apenas dizia: não, esse é outra história, é realmente
o melhor que eu já vi, navega por outras águas.
Quem era Maradona? Era um então jogador do
Napoli que fazia com que meu pai, na época com não mais de cinco canais,
ligasse a televisão todos os domingos de manhã na
Bandeirantes para vê-lo jogar. Eu olhava de soslaio e não achava muita graça,
mas igualmente a atração por aquele simples jogador começava a me intrigar.
Lembro que me chamava a atenção como el Diego apanhava.
O primeiro jogo de futebol que eu lembro onde
tê-lo visto foi na sala dos meus avós em Ipanema em uma televisão vanguardista para
a época. Lembro perfeitamente que vi apenas flashes do jogo que, repito, ainda
não conseguia manter-me atento por muitos minutos. Tinha coisas melhores para
fazer na imensidão do pátio de Ipanema numa tarde de domingo, último dia de
meus tradicionais fins de semana com os saudosos avós. Provavelmente estava
também a minha prima, meu irmão, ou seja, havia coisas mais interessantes para
fazer do que aguentar 90 minutos com minhas energias em marasmo.
A Argentina ganhou. 1x0, gol de Caniggia. No
entanto, poucos falavam de Caniggia e muito menos do Valdo que jogou essa copa
e esse jogo. Os adultos da minha família apenas falavam de Maradona e de Dunga.
O segundo por não ser capaz de parar o primeiro nem com falta e o primeiro,
bem, o primeiro...todos falavam da tal jogada.
Demorei mais de uma década para ver a tal
jogada. Na época, não seria necessário dizer, não havia muitas opções para ver
um gol, uma jogada. Ou assistiam-se os programas esportivos ou jamais se
poderia ver o que fora perdido ao vivo. Não vi. Passaram anos. Lembro vivamente
do meu constrangimento quando escutava comentários sobre a jogada. Menti. Disse
que havia visto. Não poderia ser o único que não tinha visto.
Em toda essa década, pensei nessa jogada. Como
teria sido? E o autor, quem é? Quem era Maradona?
Jorge Valdano uma vez disse: “o futebol é a
coisa mais importante das coisas menos importantes”. Os meus quatro leitores
sabem do meu fanatismo por futebol. A falta de concentração para seguir 90
minutos de bola rolando hoje podem ser três ou quatro jogos no mesmo dia.
Submeti-me a uma operação desnecessária para poder voltar a chutar uma bola. O
futebol é a coisa mais importante entre as menos importantes da minha vida.
Nem todos sabem quem era realmente Diego ou
melhor, o que era. Escutei comentários manifestando surpresa pelo que sucedeu
depois de sua morte, mais especificamente nas ruas argentinas e nas de Nápoles.
Para mim Maradona foi a maior personagem da história. Exagero? Talvez. Mas
alguns fatos tornam a minha afirmação algo menos descabido do que parece. Algum
Beatle disse que a banda era mais famosa que Jesus Cristo. Pois Diego é mais famoso
que os Beatles e, por muitos, mais adorado que Jesus Cristo.
A Copa de 1994 me pegou em uma época onde eu,
aos meus 12 anos, jurava, de pés juntos, que nada era mais importante que
futebol. Caso perguntado à época sobre a afirmação de Valdano, o teria
corrigido afirmando com a típica audácia infantil que o futebol era a coisa
mais importante e ponto final. Desde 1994 eu vejo todos os jogos de todas as
copas. E foi nessa copa que reapareceu aquele ser que tanto me intrigava:
Maradona.
Meu pai, aos poucos, ia me contando sobre as
peripécias da vida de Diego. Quando fiquei sabendo que ele estaria na copa de
1994 me surpreendi: ingenuamente achei que era apenas um jogador de futebol que
havia desaparecido e que voltava para dar o seu último susto como um fantasma
de filme de domingo à tarde. A seleção argentina de 1994 era, disparada, a
melhor do certame. Do meio para frente jogava com Redondo, Simeone, Caniggia,
Batistuta, Balbo e...Maradona. Sim, com a 10. Poderia, enfim, vê-lo jogar já
entendo bastante mais do jogo e da personagem em questão.
Enquanto Maradona esteve na copa, vivi em
êxtase tamanha qualidade. Dele e do resto do time. O gol contra a Grécia. A
jogada. A definição de Diego. O grito furioso para as câmeras. E, vale
salientar, que Maradona ainda era um jogador de futebol para mim. O melhor, mas
apenas um jogador. Humano. Fiquei destroçado com o
desfecho da história e minha tia Tânia me consolou me dando uma camisa da
Argentina que mandei para uma costureira amiga da minha vó bordar atrás
“MARADONA”. Guardo-a até hoje.
Passaram mais anos e meu interesse pela figura
Maradona, pelo mito Maradona, pela lenda Maradona foi aumentando diretamente
proporcional à evolução tecnológica que me permitia ver e saber mais sobre sua
vida. Apareceu a televisão a cabo e consequentemente os canais argentinos. E,
em seguida, a internet.
Passei a ser um “historiador” do mito Maradona.
Hoje, já passados mais de vinte anos da copa de 1994, posso dizer que sei muito
sobre a vida do mito. Tudo, impossível. Mas sei o bastante para me impressionar
com a grandiosidade de um ser humano que de humano tinha tudo e muito pouco.
Desde a morte de minha vó e de Maradona, todos
os sonhos que tive e posso lembrar contavam com algum dos dois ou ambos
envolvidos, pois, como alguns sabem, minha avó também me acompanhava nessa
admiração por Diego. O que gerou Maradona jamais outro ser humano foi capaz de
gerar. Num país tão católico como a Itália, milhares de pessoas peregrinavam à
casa de Diego em cima de uma colina em plena noite de Natal empunhando taças de champanhe para brindar com ele que, por sua vez, aparecia na
sacada da casa, brindava e lançava panetones.
Maradona era tango, era o pibe sem regras,
imparável. Poucos sabem, mas a primeira Ferrari preta foi produzida para ele. O
conservador Enzo Ferrari, fundador da empresa, quase agrediu o empresário de
Diego quando este disse que o então campeão do mundo e 10 do Napoli queria uma
Ferrari, mas que tinha que ser...nera. Como era para Diego, Enzo cedeu.
Em uma excursão à África, ao aterrissar na Costa
do Marfim, ouviu-se um barulho depois de alguns minutos e era simplesmente uma
multidão que invadiu a pista e cercou o avião da delegação argentina e tudo
isso em uma época pré-internet. Diz a lenda que até em cima da asa havia
fanáticos locais ensandecidos.
Em um encontro com o papa João Paulo, há uma foto em que se vê Vossa Santidade em um canto e toda uma
multidão fixamente mirando a Diego. E isso não foi o mais absurdo do ato. Ao
invés de Diego beijar a mão do papa, o papa beijou a sua mão.
Ao morrer por cerca de dez minutos em Punta del
Este, quando voltou à vida, abriu os olhos e convidou o seu amigo e empresário
da época Guillermo Cóppola a ir comer um bife à milanesa com batatas fritas
para a surpresa de todos os presentes incluindo os médicos que diziam ser
impossível que um ser humano voltasse consciente desde o “outro lado”. Vale
mencionar a relação de seu amigo que, trêmulo, respondeu: “pero te acabaste de
morir, pelotudo!”
Sua filha mais velha um dia lhe comentou que
adorava os carros Mini Cooper. No outro dia, no pátio da casa, enrolado em
papel de presente estava um Mini Cooper. A menina, em uma mescla de estupor e
felicidade lhe disse: “mas pai, eu só tenho 12 anos”.
Quando foi com a delegação argentina jogar um
amistoso em Israel, foram visitar o Muros das Lamentações e, pela primeira e
única vez, os rabinos ortodoxos abandonaram suas preces e foram vê-lo.
Maradona não tinha regras, não respeitava
regras e fazia com que tudo ao seu redor se desprendesse de qualquer norma ou
normalidade.
Mito. Maradona, desde os 15 anos, ao mesmo
tempo em que se tornou “pai” de toda a sua vasta e miserável família, deixou de
ser um humano qualquer com direitos e deveres. Passou a ser algo mais. Enquanto
a maioria das pessoas se queixa por ter tido que passar muito tempo trancada
dentro de casa durante esse fatídico ano, Maradona viveu uma “quarentena” desde
os seus 15 anos quando estreou no futebol profissional dando uma caneta num
adversário em seu primeiro toque na bola e, assim, permaneceu até os seus
últimos, solitários e tristes dias. Maradona jamais pôde sair de casa. Jamais
pôde ir a um restaurante. Maradona morreu sem ter ido ao cinema jamais. Há
relatos de que pessoas quebravam as janelas de recintos onde ele estivesse para
tocá-lo, vê-lo. Maradona morreu jovem, mas esses 60 anos foram 200 anos, algo
demasiado pesado para alguém que era humano e que, ao mesmo tempo em que tinha
uma vida artificial e longe do humanismo, uma vez, caminhando em uma pacata
cidade suíça acompanhado por um jornalista amigo que inclusive escreveu uma de
suas biografias, notou que pouco era importunado. O jornalista, após o
comentário do perplexo Diego lhe disse que talvez seria, então, um lugar
perfeito para ele morar. Maradona sorriu e lhe respondeu que depois do segundo
dia cometeria o suicídio. O apego à fama, à loucura, à vida anormal foi o
primeiro vício de Diego.
Sim. Apesar de ser alcunhado por muitos como
“Deus”, ter santuários em sua honra e até uma igreja maradoniana, Maradona era
mais humano que a grande maioria dos mortais, incluindo os que o veneram.
Maradona era generoso, adorado por todos os seus companheiros e pelas pessoas
que tiveram a chance de conhecê-lo um pouco melhor. Maradona era sensível, de
choro fácil. Maradona não era Deus, era um dos filhos dele: cheio de defeitos;
pecador. Tramposo, provocador, contraditório, mulherengo, irresponsável, cedeu
a muitíssimas tentações, mordia a maçã com mais frequência que os seus
seguidores e difamadores.
Talvez a pior tentação que o perseguiu foi a
cocaína. Inúmeras vezes Diego, com um ar nostálgico, com uma mistura de
ingredientes como arrependimento, desolação e ternura lançava a pergunta sem
resposta: que jogador eu teria sido se não tivesse usado cocaína? E complementava,
taciturno: que jogador o mundo perdeu a oportunidade de ver.
Maradona jogou apenas 491 jogos profissionais.
Numa busca insana, já consegui ver mais de 300 jogos completos de Diego e
sempre digo que ver um jogo completo é um prazer infinitamente maior do que ver
apenas lances de sua genialidade. Há poucos dias consegui um jogo dele numa periferia
de Belgrado. Chegou aos seus ouvidos que uma família precisava de ajuda para
pagar o tratamento de uma criança. O Napoli negou a participação dos seus
jogadores nesse jogo beneficente, mas Diego não tinha regras. Foi. Jogou na
lama, jogou como uma final de Copa do Mundo e foi mais Diego e mais humano do
que nunca.
A relação de Diego com a bola era de amor. Como
ele bem disse em sua festa de despedida, “la pelota no se mancha”. Nos seus pés
a bola desfrutava, gozava, se retorcia de amor e até dormia. Adorava-o. A discussão
de quem foi o melhor é aberta. Gosto cada um tem o seu. Para mim, considerando
todas as variáveis possíveis, Messi foi ainda maior que Diego e isso devido à
sua constância, trajetória e foco no futebol. Não obstante, tecnicamente
falando, esteticamente, saindo do frio da análise pragmática, Maradona foi o
que teve a relação mais exuberante com a bola, o que mais a adorou, um dos
poucos que a colocou por cima de outras importantes relações da vida de
qualquer humano: família, amigos, vida pessoal. Diego contrariava Valdano e
punha o futebol como a coisa mais importante de todas e ia ainda mais além: a
bola estava no topo de tudo, do mundo, do seu mundo, de sua loucura.
Eu, depois de tantos anos, afirmo que prefiro
ainda mais o mito Maradona que o jogador Maradona. Craques sempre existiram e
sempre existirão. Como el pibe de oro, jamais; no entanto seguem nascendo,
existindo, desfilando. No entanto mitos, bom, mitos, apesar da atual
vulgarização do significado da palavra, mitos são raros, aparecem a cada novo
século, milênio, vá saber. Sempre fui contra a carreira de Maradona como
técnico, pois o colocava sob análise, era exigido, era tratado como um humano,
cobrado. Maradona não poderia mais estar entre os mortais com um trabalho de
mortais. Maradona estava por cima de tudo e de todos. Não há, na história,
alguém que, sempre que abria a boca, deixava uma frase que poderia terminar em
uma camiseta, em uma tatuagem. Uma bíblia não seria suficientemente grande para
registrar todas as suas frases, suas proezas. O clichê de que todos somos
iguais é uma falácia e o mito Maradona ajuda a desconstruir essa ideia errônea.
Mitos morrem? Jamais. Maradona apenas
desapareceu fisicamente, mas seguirá eternamente nos imaginários de todos.
Teve, felizmente, a despedida mais real e humana que merecia sendo técnico do
Gimnasia e sendo ovacionado em todos os estádios argentinos em vida até que a
praga moderna resolveu dar as caras e, consequentemente, ajudou bastante a
empurrar Diego para a depressão de seus últimos dias. Os tronos que eram
instalados nos estádios para recebê-lo se tornaram ornamentos inúteis. Pessoas
morrem e se tornam mitos enquanto Diego já gozava de tal título. Finalmente irá
descansar dando um golpe duro à infância, aos imaginários de muitos como eu.
Diego, nos seus últimos dias sentia falta de seus pais. Sentia uma insana e
inatural vontade de ser filho outra vez, depois de tantas décadas sendo o “pai”
de seus pais, de seus filhos, de seus irmãos, de amigos e de outros tantos. Maradona
já queria morrer.
Minha teoria sobre a figura de Jesus Cristo é
polêmica, mas compreendida por muitos. Analiso Jesus do ponto de vista
histórico. Judeu, filho bastardo, foi obrigado a fugir de casa para evitar o
escândalo. Enamorou-se de uma prostituta. Ganhou a vida como profeta. Tinha a
clássica inteligência superior do povo judeu, bom discurso, era bonito,
atrativo, gerava fascinação em quem o via. Lutou pelos desprovidos, distribuiu
alimentos aos que não tinham. Ganhou inimigos e terminou sofrendo o pior dos
castigos. Posteriormente, foi chamado de salvador, algo que nunca entendi.
Maradona não foi Deus, longe disso. Maradona foi mais um jesus. Deu alegria a
muitos. Lutou pelos excluídos do sul da Itália, ajudou quem pôde, caiu na
tentação sem livrar-se, jamais, do mal que, segundo o próprio, sempre esteve
dentro dele e somente ele sabia os arrependimentos e dores que queimavam seu
interior. Grande orador e possuidor de uma espécie de misticismo que fazia com
que sua simples presença paralisasse a tudo e a todos por alguns segundos. E,
assim como Jesus Cristo, nos salvou de absolutamente nada.
Maradona queria apenas jogar uma Copa do Mundo
e ser campeão. Jogou, ganhou, foi o melhor e fez o gol mais espetacular e o gol
mais polêmico de todos os tempos dando uma demonstração de duas de suas
principais facetas: o Maradona artista, gênio, Deus; e o Maradona tramposo,
pecador, humano, Jesus Cristo.
Apesar de provavelmente nunca ter sido uma
pessoa feliz, gera, na maioria das pessoas, graça, arranca um sorriso quando
nele se pensa. Até o seu último adeus foi um causador de rebuliços, distúrbios,
caos, vide o velório mais imenso, bizarro e dramático da história.
Um beijo eterno de um grande admirador. AD10S.
https://www.youtube.com/watch?v=XwToXtOPsGQ&t=3s
Um comentário:
Memórias Impagáveis! Parabéns, mais uma vez, pela destreza ao escreveres e ao ballet com os fatos! 🙌🏼❣️
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