O meu único colunista tem seus momentos de nostalgia e cafonice. Leio apenas um colunista. Todos os dias. Juremir Machado da Silva é o escolhido por sua ironia, sarcasmo e inteligência. E Juremir de vez em quando cai em uma espécie de depressão nostálgica. Diz que, escutando Roberto Carlos com suas “emoções” relembra dos tempos de sua Palomas, pequena cidade localizada perto de Santana do Livramento. É cafona? É; no entanto, há momentos em que somos todos dominados por essa nostalgia, essa saudade do passado.
Pois eu hoje estou nostálgico. Faz frio úmido e chove sem parar em Porto Alegre. Para pessoas normais, um clima perto do insuportável; no entanto, é o meu preferido.
Sinto mais falta de Ipanema do que Porto Alegre; sinto mais falta da Ipanema de minha época de criança do que a Ipanema atual e de Porto Alegre.
Na minha infância um dia assim, de frio intenso e chuva, seria para reunir-se com os amigos em casa e jogar International Super Star Soccer durante toda a tarde.
Qualquer ameaça de diminuição da chuva era motivo para uma batida de bola na rua. No
entanto havia o nosso amigo Rique que sempre - parecia que esperava esses dias - nos convidava para jogar bola em seu campinho ao lado de casa.
Três para cada lado, barro e muita água acabavam com um par de tênis e uma prenda de roupas inteira. A situação era tão caótica que tentávamos dizer não, mas não adiantava, o poder de persuasão do amigo e a paixão pelo futebol eram tão grandes que lá acabávamos a noite, não importando se já havíamos tomado banho e os tênis eram novos. Lá estaríamos. Felizes.
Ipanema era como uma pequena cidade do interior dentro de uma grande cidade. Nossa Passárgada. Os mais antigos, quando tinham que ir ao centro ou qualquer outra zona da cidade diziam que iam à “cidade”. Ipanema não fazia parte da cidade. Ipanema tinha e ainda tem estabelecimentos que não fazem parte da atual sociedade. O mercado do Alberto que não tem nome era um exemplo. Lá íamos e não pagávamos, anotávamos em um caderno e, ao final do mês, nossos pais pagavam. Muitos picolés e refrigerantes durante o verão, muitos chocolates e bombons durante o frio do Pampa.
O bar do Turíbio também é outro elemento bizarro do bairro. Aos fins de semana havia o famoso churrasco do velho Turíbio. Ia quem queria, comia-se muito e bem e, ao final, quem quisesse pagar, pagava. O almoço do dia era feito pela velha esposa do velho Turíbio, mais conhecida como “Robocop” por seu caminhar robótico causado pelo reumatismo. Não havia cardápio nem opções. Comia-se o que tinha na casa, o que a família comeu.
Nossos dias mantinham surpresas. Nunca sabíamos o que iríamos fazer. Claro, a rotina estava de certa forma presente. Durante a semana, após o colégio, era questão de minutos para que chegasse a minha casa o meu irmão que não morava comigo. De dentro do meu quarto o via chegar. O portão não era trancado, assim que eu não precisava nem me levantar para abrir a porta. Chegava ainda de uniforme do colégio catando tatus do seu adunco nariz. Entrava, nem dava oi. Pegava um controle e jogávamos um pouco de International até a comida baixar ou então olhávamos os gols da rodada.
A única coisa que sempre tinha sem falta e não importando o clima era futebol. Ao final da tarde, estávamos sempre famintos como dragas. Nada como um convite do meu pai para irmos comer no Número 1 Lanches, uma lancheria que servia uma imensa a la minuta que depois se transformou em discoteca de marginais e hoje é uma loja que vende colchões.
Nos fins de semana pelo menos tentava dormir até tarde. Como não havia aula, a chegada de meu irmão era sentida por volta das 8h. Soava a batida da bola na parede exterior de meu quarto. Ele simplesmente não respeitava. Não se alterava ao ponto de tocar a campainha: Ficava lá, no pátio, batendo bola e esperando seus companheiros mais preguiçosos levantarem para um dia integral de diversão.
A sucessão de disputas de International não pode ser ignorada em um texto sobre a infância. Acho difícil que, no mundo, alguém tenha jogado mais e melhor do que nós dois esse jogo. E não era apenas um jogo de vídeo-gueime, eram verdadeiros embates.
Havia os clássicos como meu pai contra Ângelo, talvez o maior entre todos os clássicos. Se o segundo marcava um gol muito cedo, o primeiro resetava o jogo sem nem olhar para o adversário que não reclamava. Cada um com suas peculiaridades. Meu pai com times europeus sem jogadores negros e que prezavam a organização tática e a defesa; Ângelo sempre louvando as sub-raças ia de México ou algum time africano; eu, sempre demente e organizado, ia revezando e só trocava de time após uma derrota; anotava com que time ganhava mais. Adorava jogar com a Coreia do Sul porque o time era bom e porque meu maior rival detestava e segue detestando raças orientais.
O nosso mundo era basicamente quatro quadras. Não tínhamos muito interesse em saber o que passava fora de nosso território, território esse que tinha inimigos, claro. Poucas vezes saíamos dessas fronteiras. Comprar botões na Ipanemy exigia um deslocamento maior, bem como a interminável viagem até a AABB que era uma espécie de outro continente. Felizmente havia as bicicletas, nosso meio de transporte por vários anos.
Outro fator marcante dessa época era a ausência de dinheiro, papel moeda. Simplesmente não nos interessava. De vez em quando comprávamos alguns botões como citei anteriormente, mas dinheiro nunca foi tema em nossa infância. Um ou dois reais eram suficientes para subornar os testas-de-ferro da SABI para que nos deixassem jogar à luz de boate e deu, não era mais necessário.
A organização populacional masculina do bairro era simples. Dentro do meu terreno, meu avô, meu pai, Galo e eu. Duas quadras à direita, meus outros três irmãos que não moravam comigo. Uma quadra na diagonal, a casa do Bruno, outro ponto de encontro e centro de diversões comandado pelo carisma e o sempre inalterável bom humor da tia Loiva, a matriarca da casa e das pessoas mais queridas por todos na nossa rica infância.
Meu vô era talvez o maior personagem do bairro. Um velho demente, fumante inveterado e tomador de cerca de dois litros de leite diários. Tomava cerca de 40 cafezinhos por dia e, de café da manhã, ia de chuleta com ovo frito acompanhado de uma paint de leite cru. Brincalhão, o que mais gostava na vida era ver a gurizada atormentando na casa. Protegia o mais fraco e adorava ao de pior caráter. Muitas vezes, devido à presença de seus Ray-Ban de lentes verdes, não sabíamos se ele estava acordado ou dormindo quando sentado no avarandado ou nos canteiros. Nos almoços de domingo, era o dono da festa e o rei da brincadeira de servir bebida a todos e deixar Ângelo de copo semi-vazio. O pior é que a brincadeira milenar jamais perdeu a graça. Somente o meu velho que, implicante com o Hector, resmungava para ele mesmo: “trouxa...”
Devido ao clima receptivo e amistoso de minha casa, por lá passávamos a maior parte do tempo. Na casa de meus outros irmãos reinava mais a disciplina, algo que jamais suportamos e que nos fazia comportar um pouco mais. No verão, passávamos por cima da disciplina e desfrutávamos da piscina pelo menos bem como de alguns churrascos ao meio-dia de domingo vendo jogos do Campeonato Italiano sendo narrados pelo Silvio Luiz na eterna televisão bege do Tergolina.
Na minha casa também havia temporada de piscina com direito a concurso de pontas. O juiz, sempre ele, Hector, de Ray-Ban, cigarro em punho, pele de jacaré torrada pelo sol e que chegava ao ponto de cochilar até dentro d´água. O velho Heitor aproveitava sua posição privilegiada de dono da lei e favorecia clamorosamente a Galo, o menor de todos. Dez com louvor era a nota mais recebida pelo esquálido Garni Zé.
Muitas pessoas nos remetem à infância, mas também alguns aromas e lugares me fazem pensar nos tempos já distantes. O cheiro de goiaba é algo que de imediato provoca no meu cérebro uma reação de nostalgia. Todos os verões era o mesmo cheiro forte de goiaba podre no chão seco com um sol implacável que catalisava o alcance de seu aroma. O curioso era que, a exceção do excêntrico Pablo e desde que minha avó parou de fazer doces e chimias de goiaba, ninguém mais as consumia. Tudo acabava podre no chão sendo desfrutado apenas pelos pássaros de gostos alimentícios ecléticos durante o dia e pelas terríveis gangues de gambás noturnos.
Outras frutas menos olorosas também tinham sua época. As uvas pretas que na verdade eram roxas e as rosas que de fato eram rosa quase ruíam as estruturas de nossa parreira. Comíamos uvas de diferentes formas, desde os cachos refrescados por um período na geladeira, até cucas e suco, muito suco. Dificilmente um estômago humano aguentaria a quantidade de litros que consumíamos durante os calorosos primeiros meses do ano. O calor escaldante era convidativo para um cacho de uvas frescas na beira da piscina.
Outras frutas de sucesso e de presença constante eram os maracujás e os abacates. Os primeiros coloriam de amarelo dois ou três pés e também, assim como as uvas, eram fonte de inesgotáveis toneladas de litros de suco. Já os abacates eram utilizados pela minha vó para pelo menos tentar diminuir o ímpeto assassino de fome dos jovens em crescimento. Talvez por temer o desempenho animalesco de Ângelo durante o café da noite, nada melhor do que uma batida reforçada de abacate durante a tarde. Duas paints para cada um era como ter comido dois quilos de carne. Infelizmente para a minha vó, assim como desenvolvíamos com rapidez também digeríamos com eficiência e Ângelo não terminava um café da noite sem antes ter comido pelo menos três cassetinhos e meio quilo de queijo. O ritmo frenético em que ia ao banheiro renovava constantemente sua fome voraz.
Muito dessa fome devastadora e ânsia por comer que marcou nossa infância era devido à intensa atividade física, leia-se “futebol”. O campinho no pátio da minha casa com uma goleira de árvores sem travessão e outra feita pelo meu pai sob nossa apática supervisão somados a goleira conformada por dois postes de concreto que sustentavam a parreira, eram o nosso hábitat mais natural. Com luz natural ou com luz artificial e com voos rasantes de morcegos injuriados com o intenso e infindável movimento em seus territórios jogávamos o dia inteiro, até a exaustão que só foi chegar com o fim da infância.
Se não era na minha casa era na SABI, o nosso eterno templo. Éramos obrigados a subornar os pobres funcionários, muitas vezes chegávamos ao ponto de interromper suas sestas e ainda nos parecia absurdo quando preferiam nos ignorar e seguir com seus sonos do que abrir as portas do nosso paraíso. No piso de parquê da SABI jogávamos quase todos os dias a exceção das segundas-feiras quando o clube não abria e, obviamente, essa regra nos indignava. Quando nossas humildes propinas não eram suficientes ou demasiadamente humildes, nos restava jogar sem luz confiando em nosso instinto.
A Sociedade dos Amigos do Balneário de Ipanema, fundada por meu bisavô na época em que Ipanema era um balneário, que o Guaíba era limpo e que donzelas aristocráticas como minha vó lá iam aos fins de semana vestindo vestidos veranicos brancos e chapéus também foi sede de alguns torneios memoráveis de futebol de salão, a maioria organizado por nós mesmos. Ganhávamos de todo mundo. Sempre. Mesmo quando o nosso maior atleta Rique abandonava a cancha para dar lugar a seres hediondos do bairro como Conrado - jovem desprovido de qualquer talento e que tinha um apelido que remetia aos piores dos dejetos humanos - assim mesmo seguíamos empilhando gols e brindando os mais de dois espectadores com bom futebol, ou melhor, bom futsal.
Esses campeonatos tiveram seus momentos históricos como o seu Dudi, famoso por sua estirpe disciplinadora sendo árbitro de alguns jogos. Meu pai também vestiu os trajes negros e aceitou a posição cuja principal qualidade é o desapego à própria mãe. Apitava o jogo com um copo na mão, lavado em suor e prejudicando sem disfarçar o bom desempenho de seu filho bastardo Ângelo. Falando em nossos pais, o velho Günther, cidadão germânico nascido em Frankfurt e radicado em Ipanema chegou ao ponto de discutir com o nosso adversário mais boçal, Bugio, o negro de pele branca que rugia a cada chute ao arco.
Apesar das dificuldades, a SABI sempre acabava cedendo à nossa tentação de jogar. No entanto havia um local idílico, místico eu diria, que era quase impossível de se lograr. A FUNSEG era um clube que possuía uma cancha de salão impecável e um campo de futebol sete espetacular que atrás abrigava um banhado que, dizia a lenda, até cobras e crocodilos albergava. Jogar lá era uma obsessão tão grande e incontrolável que chegávamos ao ponto de cometer o crime de invasão de propriedade privada. Simplesmente invadíamos e não satisfeitos ainda acendíamos as luzes do ginásio e lá jogávamos com um olho na bola e outro na porta esperando os capangas do clube acordar e irem atrás de nós de rotweiller em punho. Voltando ao banhado que hoje é parte de um novo centro comercial do bairro e possui concreto onde antes tinha místicas anacondas, nunca me esquecerei do dia em que estreava uma meia nova do Grêmio toda azul celeste da Penalty e fui o responsável por um mal disparo à meta. A bola caprichosamente passou entre os inúmeros buracos da grade e espatifou-se no banhado. Devido à lenda dos animais carnívoros que habitavam o lugar, não tirei os tênis e lá fui, atolar-me na lama para recuperar a redonda. Felizmente nesse dia nem as anacondas nem os crocodilos estavam em casa para amedrontar os barulhentos cidadãos que causavam rebuliço na área ribeirinha.
Na já citada Coelho Parreira havia também outro centro de futebol dos fins de semana ou férias que era a casa do Omp. Omp se chamava Leonardo e é mais conhecido por ser o cara que chorou quando teve sua pessoa e seu futebol denominado com o adjetivo “sinistro” em uma alusão a um comentarista de televisão da Bandeirantes. Omp era asqueroso. Foi meu colega na infância e é filho do Nobrinho, ex-comentarista esportivo que uma vez foi flagrado por nós em um restaurante do bairro que tinha um touro mecânico com outra mulher que não a sua esposa e consequentemente mãe de Omp e que está longe de ser menos asqueroso que sua prole única.
Omp era tão asqueroso que era a única pessoa à época que conseguia ser odiada por Ângelo. Ok, hoje Ângelo é um homem velho, depressivo e corroído pelas punições impostas por “El Barba”, mas naquela época ele jamais havia odiado alguém antes. Em um aniversário do dito cujo Ângelo o xingou durante um torneio de futsal e este revidou com uma agressão física. Consequência: foi expulso do campeonato que comemorava o seu PRÓPRIO aniversário. Resumo da ópera: Ângelo ARRUINOU a festa do coitado mesmo sendo jogador do MESMO time do brigão excluído.
Terminando a sessão de lugares em que jogávamos não posso não mencionar o campo caseiro do Maurício, um carioca asqueroso que vinha em suas férias e somente com ele em Porto tínhamos chances de pisar numa relva que mais parecia o gramado do velho Wembley, hoje destruído. Aliás, “Wembley” era o nome que demos ao espaço verde da rua Coelho Parreira, lugar de fundação do freguês de carteirinha Parreirense e fundado por um ex-jogador do nosso time expulso do “clube” por mim, que era, além de ala direito, presidente da instituição mais vencedora do bairro.
A nossa relação com o literalmente “dono do campinho” era de uma falsidade de dar inveja a muita mulher. Suportávamos todos os seus caprichos para manter a suposta amizade intocável e seguir jogando lá todos os verões quando ele cometia a loucura de sair do Rio de Janeiro e ir para Porto Alegre em pleno verão. Quando chegava a época das férias do gordinho, sempre perscrutávamos com mais afinco o terreno com o intuito de encontrar algum movimento humano.
Além do futebol tivemos também algumas experiências em outros esportes, mas nenhuma delas foi duradoura. Improvisamos uma cancha de tênis onde era a cancha de futebol de nossa casa. Piso de saibro natural contando também com adubo natural cedido pelos ilustres cachorros que passaram pela casa. A rede era um banco milenar de madeira.
Os jogos de tênis não duraram muito. Primeiro porque tínhamos pernas saudáveis e queríamos era jogar futebol e segundo porque chegou um ponto em que ninguém mais aguentava o estilo arrogante e asqueroso com que Ângelo desfilava levantando pó do nosso saibro. Assim como os confrontos de futebol, as partidas de tênis eram jogadas de dia e de noite e eram às vezes interrompidas pelas visitas através do portão de Heloísa que nos oferecia uma sopa de feijão com pão velho enquanto catava pinhas para a lareira com seu típico e eterno frenesi. Falando em Heloísa, sempre saliento que é das pessoas mais fantásticas que já conheci na minha vida e que foi uma das imensas personagens de minha infância e segue sendo parte de minha vida. Era alguém que jamais perdia o bom humor e a disposição não importando a situação em que se encontrava.
Além do tênis, tentamos também o futevôlei e esse foi um sucesso que durou um verão. Jogávamos no gramado inclinado em frente à janela do quarto de meus avôs. Os times sempre se repetiam: eu e Ângelo contra meu pai, Galo e Lãqui. Na arquibancada lá estava o eterno crocodilo fumante, torcendo pelo Galo e acusando meu pai que a essas alturas suava como um suíno de ser o responsável pelas derrotas do time de três integrantes. Era fisicamente impossível a prática desse esporte em terreno tão irregular, mas, outra vez, nos adaptamos perfeitamente às condições do ambiente e nos tornamos excelentes jogadores.
Como não poderia faltar, também havia os vilões do bairro. O principal deles foi um temível rotweiller cujo nome soviético gerava calafrios em todos e nunca soube se era uma homenagem ao escritor russo: Gorky. No entanto sei que a palavra “gorky” em russo significa “amargo”. Nada mais propício. O desgraçado cão tinha uma raiva imensurável por nossa alegria e expressava toda essa sua amargura destruindo qualquer bola que ousasse cair em seu terreno. As destruía com uma raiva assombrosa e com um ritual de tortura psicológica incluído. Grandes bolas da nossa infância tiveram as garras e dentes afiados do cachorro soviético como suas armas mortais.
Jamais esqueceremos a nossa japonesa Pelada que não era uma revista erótica do país do longínquo oriente senão uma bola de couro brilhosa trazida ao Pampa pelo elenco de um time nipônico amador. Chegamos a estudar a hipótese de mandar o rotweiller do bem para o terreno vizinho e acabar com a raça desse maldito sucessor de Stalin. Por pura ironia do destino, ou melhor, do passado, o nosso rotweiller do bem se chamava “Russo”. Ou seja, seria briga caseira e em briga de russo eu, pelo menos, não me meto.
Eu estaria sendo um ser humano preconceituoso se não citasse a Russo como um dos personagens do bairro que marcou nossa infância. Russo convivia com Dóbi que era uma espécie de seu oposto em gênero, número e grau. Russo era, antes de mais nada, um boa vida e “cadeleiro” nato. Durante o dia mantinha-se recostado. Se injuriado, rosnava. No entanto, quando a noite caía, se tornava uma verdadeira ameaça para todas as cadelas recatadas ou nem tanto do bairro. Fugia não importando o novo empecilho armado pelo velho Heitor. Saía de noite e somente reaparecia na manhã seguinte quando, ao sair de casa para ir ao colégio, lá estava ele sentado na frente do portão principal com cara de arrependido, não - literalmente com o rabo entre as pernas, pois este tinha o rabo podado e esperando a punição. Jamais em minha vida conheci um ser mais boêmio do que Russo que não deixava de dar suas escapadas uma noite sequer.
Ao seu lado Dóbi, um dos seres mais idiotas que já conheci. Por mais que o portão estivesse escancarado com um churrasco, gatos paraplégicos e cadelas no cio na frente deste, ele não saía. Preferia estar no pátio correndo atrás do próprio rabo, com uma pinha na boca e oferecendo uma surrada e empapada bola de tênis para o primeiro que aparecesse. Infelizmente a harmonia canina na casa acabou num dia em que Russo quase matou ao pobre Dóbi que se foi de casa tendo nitidamente perdoado o amigo com quem teve um dia de diferenças incompatíveis.
Quando o futebol nos dava trégua, também tínhamos algumas outras atividades. Fazíamos pega-pega de bicicleta o que é, segundo o outro, um dos esportes mais perigosos de todos os tempos, comparado ao futebol medieval e às batalhas de gladiadores com tigres. Além das bicicletas contemporâneas tínhamos uma relíquia. Uma Monarc 1976 com freio no pedal que pertenceu ao meu avô.
O que prejudicava a maioria das nossas brincadeiras ou o próprio futebol era as constantes e patéticas brigas entre os pequenos. Lãqui e Galo não passavam muito tempo em cessar-fogo. Qualquer diferença tirava o pavio curto Lãqui do sério e a vítima era quase sempre o menor do grupo. Inesquecível a briga que durou cerca de 10 segundos e que foi prematuramente findada devido à percepção do ridículo da situação pelos dois ao mesmo tempo quando se viram um agarrando a orelha do outro. Os métodos utilizados foram tão surreais que acabou com qualquer chance de peleia.
Ângelo e eu também tínhamos o saudável hábito de arruinar festas de terceiros. Ângelo entrou por um buraco na cerca da casa do Vinícius e roubou doces da festa da Carol. Foi descoberto pela diabólica avó da aniversariante, mas encoberto pelo brincalhão Vinny que, por sua vez, detestava a sogra. Falando em Vinny, difícil encontrar um personagem mais fantástico do que este. Jamais conheci um ser humano com tão pouca vergonha de tudo. Jamais esquecerei a cena dele se escondendo atrás das árvores de minha casa para que a sogra que estava de visita não o visse. Um de seus atos terroristas favoritos era massacrar e envergonhar o pobre Galinho. Quando nos buscava no colégio colocava meio corpo para fora do carro e gritava sem parar “Tini, Tini” e fazia gestos de masturbação masculina para desespero do tímido Tini que em questão de milésimos via sua pele alpina ruborizar.
Se eu fosse escrever todas as histórias de nossa infância aqui, iria morrer em frente ao computador. Volta e meia imagens felizes me cruzam a memória como nossas idas aos jogos do glorioso Ipanema com oito pessoas dentro do saudoso Kadet branco de Heloísa. Lembro de Ângelo e eu contrariando as recomendações médicas indo jogar bola sob o sol escaldante do terreno de Belém do Bruno. O resultado foi eu perguntando ao meu saudoso irmão se estava vendo tudo azul e recebendo uma resposta afirmativa. Acabamos os dois tontos, a ponto de desmaiar sentados à beira do campo e gozando da ínfima proteção de uma imiscuída sombra que contrariava a claridade africana do espaço. Para completar, o almoço que nos deveria restaurar para seguir na batalha sob sol de 50 graus era o temível arroz de cachorro do mais temível ainda, Sérgio, o Terrível.
Lembro também de acusações graves feitas pela oposição contra nós. A irmã do Peri nos jurando sobre a bíblia que a havíamos ameaçado com canivetes. Lembro também do inconseqüente roubo da torta de aniversário de minha prima Nanda realizado pelo Pingo. Terminamos todos correndo e nos escondendo no mato quando minha vó descobriu a tentativa de furto e a possível ruína da festa do dia seguinte.
Outro dia especial foi o da final do Mundial Interclubes entre o Tricolor e o Ajax. A expectativa de todo o ano esperando, a noite anterior sem dormir, todos cedo na minha casa, a “de baixo”, não a “de cima” que nessa época era dos meus avôs, meu pai servindo café da manhã para os presentes e, depois da derrota nos pênaltis, os estrondos dos foguetes tirados por André o mesmo que expulsei do elenco do Ipanema e os gritos dementes de Pablo.
As vizinhas gostosas e arredias que se mudaram para a casa que antes era do Malé em frente à casa da Heloísa, as corridas de carros de dar corda, as batalhas de futebol de botão...tudo vai se apagando a medida em que passa o tempo. Nada mais pode trazer aqueles dias de volta e a única ação que podemos tomar é tentar relembrá-los o mínimo possível e ignorando o que o futuro guardou para seus personagens que hoje estão mortos, paraplégicos, depressivos, dementes, alcoólicos, exilados, desaparecidos, internados, doentes, ausentes...
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
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Um comentário:
Muito bom, mangola.
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