O amor e ódio são dois sentimentos
que, na maioria dos casos, têm sua parcela irracional. É difícil entender,
explicar ou justificar o cego amor materno; também é pouco provável que
possamos compreender este sentimento que temos em relação a outras pessoas,
sejam elas cônjuges, familiares ou amigos. Há pessoas que nos oferecem nenhum
motivo plausível ou concreto para que os amemos e mesmo assim os amamos. O ódio
se difere do amor por uma linha muito tênue. O ódio seria o gêmeo maldito,
seria Caim, gerado no mesmo útero de Abel, mas inimigos extremos.
Minha tarefa nesse texto é uma missão bastante difícil, pois tenho a
audácia de pelo menos tentar entender o ódio que sente grande parte da população
brasileira contra Lula, recentemente preso e transformado em um cadáver
político. Por que essa classe média branca do Sul, sudeste e centro-oeste
detesta tanto a figura de Lula? Ou detestam a pessoa de Lula? Ou o político
Lula? Ou as três coisas?
Todos os corruptos deveriam pagar pelos seus crimes e serem presos. Essa
poderia ser uma das poucas ideias que é defendida pela maioria dos brasileiros,
sejam eles cidadãos de classe média que protestam em partes nobres de grandes
cidades brasileiras cantando o hino e fardando camisas da seleção cujo novo
diretor esportivo é o filho de Zezé Perrela, aquele mesmo outrora pego num
helicóptero com alguns quilos de cocaína, ou sejam eles os integrantes dessa
nova classe média ou pobres, brancos, mestiços ou negros de grandes cidades
brasileiras ou do interior do nordeste brasileiro que defendem seu Messias em
forma de Lula. Sem jamais ter tido acesso a pesquisas sobre esta indagação,
ouso dizer que é uma ideia de todos.
Quando se mencionava a possível prisão de Lula ou agora que Lula está
atrás das grades, a primeira reação da esquerda era virar o canhão para os
acusadores e clamar pela punição aos ladrões da direita, começando pelo sempre
salvo por seus amigos influentes Temer, passando por Aécio Neves e toda sua
turma do PSDB com raras exceções. Têm razão os esquerdistas no seu argumento?
Em parte. Numa sociedade com a mínima intenção de ser democrática, qualquer
político, de qualquer ideologia, deveria ser punido da mesma forma e isso não
acontece no Brasil. Essa situação deveria impedir que se punam os ladrões de
esquerda? Claro que não. Lula, caso comprovada sua culpa, deveria ser punido. A
culpa de Lula foi comprovada? É questionável. Sendo leigo no tema sempre
considerei as provas apresentadas contra o maior ícone da esquerda
latino-americana como sendo frágeis, duvidosas. Acho eu que Lula não tem culpa
no cartório? Negativo. No terreno do achismo vou pela ideia de que sim o
apartamento foi um presente de agradecimento de uma empresa privada que usava
Lula como sua melhor ferramenta de merchandising, atuando tanto dentro das
quatro linhas do Brasil quanto em republiquetas de banana dominadas por tiranos
pelo mundo afora.
Pois Lula foi condenado. Sendo boas ou ruins as provas, a justiça
trabalhou com uma rapidez jamais vista, julgou o acusado em duas instâncias e o
condenou, inclusive lhe aplicou um plus à sua pena para deixar de ser bobo.
Estou criticando a rapidez da justiça? Jamais. Adoraria que esta fosse assim de
ágil sempre, em todos os casos, especialmente contra corruptos que sempre
escapam sorrateiramente aproveitando a falta de vigilância por parte da população.
A justiça ser rápida uma vez na vida especificamente contra o símbolo da
esquerda do país é questionável? Duvidoso? Sim, não há dúvidas. Ainda mais
considerando o corto período entre esse último fato e o impeachment de Dilma.
Segundo a constituição de 1988, só poder-se-á (homenagem ao presidente
bem relacionado) enjaular alguém após esgotadas todas as instâncias possíveis,
e Lula ainda tinha bastante terreno para usufruir. Pois eis que os ministros,
em um julgamento midiático vergonhoso, aliás, mais uma sessão vergonhosa de
nossos poderes para que todos vejam ao vivo e a cores, decidiu que não, que
Lula deveria ser preso já. Uma constituição é algo escrito que se cumpre e
respeita. Não deveria ser aberta a interpretações. O que vi no julgamento foi
um espetáculo preparado ao gosto do público fazendo jus à sociedade do
espetáculo em que vivemos. Dessa vez não houve choro e homenagens a
torturadores ou a maridos honestos presos por corrupção, admito que esperava
mais de nossos togados, mas igualmente foi possível desfrutar. Édson Fachin
parecia se desculpar pelo que estava fazendo; o famigerado Gilmar Mendes, mudou,
mais uma vez, de opinião; Rosa Weber confirmou a norma que discorda e
contrariou voto proferido alguns dias antes a favor dos habeas corpus em outro
caso.
Um meme de um amigo no Facebook chamou a minha atenção. Após o
julgamento do STF apareceu a seguinte imagem: Brasil 6x5 Cuba. Além de sempre
me impressionar a importância que a direita fanática dá a uma ilhota parada no
tempo e insignificante que já nem a esquerda dá muita bola, o que salta aos
olhos é a coerência idelogicamente seletiva. Questionei a imagem e a explicação
foi a seguinte. Se tivessem dado o habeas corpus a Lula, seria o fim do estado
de direito, da democracia e estaria instaurada uma ditadura, seríamos uma outra
Cuba. Leiamos outra vez. O estado não garantiu os direitos de um cidadão que estão
na constituição enquanto figuras importantes do exército brasileiro ameaçavam
com intervenção militar em caso de concessão de liberdade a Lula. Soma-se a
isso a mídia associando de forma simplista e sorrateira a negação do habeas
corpus com a instauração terminal da legalidade da corrupção no Brasil. Minha conclusão:
Brasil 5x6 Cuba. Negar direitos garantidos pela constituição e ameaças
provenientes dos porões do militarismo são acontecimentos não de democracias
estáveis e sim de uma Romênia de Ceaucescu, uma União Soviética de Stalin ou,
sim, uma Cuba de Fidel.
No entanto o momento mais enfadonho e triste de tudo isso, que, para
mim, passou a clara ideia de que, ao invés do que pensam os
"vencedores" dessa empreitada, mostra cristalinamente que cada vez
estamos piores foi o voto de Barroso. O ministro recém citado amparou-se no
preceito de que se a constituição não atender às expectativas da sociedade,
deve ser mudada. Em seu argumento, assim como Rosa, deixou claro que a regra
era outra, a regra, o que estava escrito, seria respeitar todas as instâncias a
que qualquer réu tem direito, mas não, isso não é o que a população quer, então
temos que mudar, pois esse não era o país que ele queria para seus filhos.
Quem, que legislador deu esse poder de alterar a constituição a Barroso? Teria
este jogado para a torcida? Teria este aceitado a obrigação de condenar para
depois não ser acusado de ser traidor da pátria, defensor da corrupção? Teria
este dito o que o povo queria escutar? É essa a posição que deve ter um
ministro do STF? Marco Aurélio foi claro, sem a pompa e o vocabulário difícil
que caracteriza alguns, disse que não se pode (ou poderia) punir
antecipadamente um réu devido a que a justiça é lenta e que, consequentemente, não
é capaz de prestar o serviço que a sociedade espera. Isto seria corrigir um
erro com outro erro. Seria o juiz que compensa no futebol. Dá um pênalti que não
foi, mas depois dá um também inexistente ao rival. Ao invés de um erro, são
dois.
Quando do golpe que tirou Fernando Lugo do poder no Paraguai e
questionada sobre sua possível queda, Dilma afirmou pomposamente: "O
Brasil não é o Paraguai". Será? Somos tão diferentes?
A justa absolvição de Lula traria resultados negativos ao país? Sim.
Daria vida ao "efeito Lula", ou seja, vários condenados em segunda
instância entrariam com o mesmo recurso e sairiam vitoriosos. O que aconteceria
depois? Apelariam todas as vezes permitidas pela constituição brasileira, a
justiça não tem o hábito de ser rápida como foi ao julgar Lula, o tempo
passaria, não haveria pessoas de camisa da seleção nas ruas pedindo o fim da
impunidade e os crimes...prescreveriam. Seria este efeito negativo? Repito que
sim. Um cidadão, seja ele tu, um de meus quatro leitores, eu ou o Lula
deveríamos ser sacrificados, privados de nossos direitos constitucionais para
"salvar a pátria"? É como a questão filosófica do trem desgovernado
que vem em direção a uma família presa aos trilhos. Temos a chance de mover a
palanca e fazê-lo ir por outros trilhos onde há apenas um homem preso aos
trilhos? É ético fazer isso? É legal? Deveríamos deixar o trem passar por cima
do Lula para evitar que outros criminosos sejam, talvez, condenados por seus
crimes?
Comparemos a Maluf. A justiça
tardou 60 anos para pegar um ladrão profissional que vinha saqueando os cofres
públicos desde a época da ditadura. Maluf foi, então, preso. Aos 86 anos de
idade. Ganhou prisão domiciliar por ser idoso e ter vários problemas de saúde.
É justo? Segundo a constituição sim. A constituição deveria ser alterada?
Talvez. Mas, enquanto isso não acontece, deveria ser cumprida. Fico feliz em
ver Maluf em sua mansão? Não, mas é correto, é a lei que garante isso. Outra opinião
minha muito criticada por pessoas próximas foi eu não estar de acordo com as
algemas nas mãos e nos pés de Sérgio Cabral. Não era necessário. Ele não
representava perigo naquele momento, foi show midiático, parte do script desse
show hipócrita da luta contra a corrupção.
Mas Lula está preso. E o Temer? No meio da loucura midiática da prisão
de Lula poucos deram bola a captura (por dois dias) de todos os seus amigões. O
nome de Temer apareceu em listas de beneficiados de propinas de empresários do
setor de portos, mas tudo passou. A corrupção no Brasil acabou, a esquerda
acabou, a classe média de camisa do sonegador Neymar vai colocar na gaveta sua
fantasia de indignado político que inclusive bloqueou estradas país afora para
impedir o livre movimento de apoiadores de Lula no melhor estilo MST e
estaremos em paz, como sempre estivemos, por 500 anos, deitados no berço
esplêndido esperando uma eleição, sem questionar o questionável, sem se
importar que a constituição vem sendo interpretada conforme o réu. Isso não
importa. Os fins justificam os meios. Rasgando a constituição Lula vai para a
cadeia? Então rasguemos.
Não fosse a pressão contra Lula tão seletiva, diria que foi o movimento
popular mais fantástico desse país desde a redemocratização. Tirou-se do poder
uma presidente e matou-se a principal ameaça aos bons costumes e ao galope
brasileiro em rumo ao futuro brilhante. Mas, aqui retorno com a questão
inicial? Por que só contra o Lula e contra o PT esse entusiasmo todo e essa
mudança de atitude? Por que só Lula-Dilma e o PT foram capazes de fazer pessoas
de bem saírem às ruas, invadirem os mais refinados lugares de nossas grandes
cidades, com babás de uniforme em punho para pedir combate à corrupção e um
melhor país. Por quê?
Lula-Dilma-PT fizeram governos em que o país cresceu economicamente
quase até o final. Os verdes e amarelos não podem dizer que sofreram nas mãos
do PT. Suas vidas seguiram iguais. "São comunistas!". Não, não são,
jamais disseram ser. Se fossem, estaria eu nas ruas pedindo que desaparecessem,
mas não eram. Nunca aumentou tanto o número de milionários nesse país, nunca os
bancos lucraram tanto. Nunca os brasileiros gastaram tanto em Nova Iorque,
Miami ou Paris O capitalismo fluiu sem ser importunado. Eike competia para ser
o mais rico do mundo, Copa do Mundo, Olimpíadas, nada mais capitalista que o
Brasil do PT, então...mais uma vez? Por que tanto ódio? Aqui algumas respostas
que recebi quando fiz essa pergunta:
"Vendiam-se como sendo os únicos honestos". Os governos do PT não
foram honestos. Houve corrupção como em todos os anteriores. Sarney foi acusado
700 vezes de corrupção envolvendo números muito maiores que os que correspondem
ao valor de um apartamento de 250 metros quadrados tendenciosamente chamado de
tríplex. Mas Sarney não é odiado; Maluf passou uma tarde preso, e está em casa
comendo caviar. Calcula-se que desviou cerca de 120 milhões de dólares ao longo
de sua pútrida vida pública que incluiu ser parte da ditadura militar. Mas não
odeia-se o Maluf. Não há endereço mais pacífico que a casa dele nos Jardins. Não
há bonecos infláveis. Os petistas sempre disseram ser os cavaleiros da
honestidade? Sim. Mas os outros também. Temer diz isso todos os dias para
aplausos orgásticos de seus 1% de apoiadores.
"Ele foi presidente e deve ser cobrado como tal". Ok, ocupou o
cargo mais importante do país, mas será que isso o torna tão mais odiado que os
demais? Sem contar que Sarney e Collor também foram presidentes e não gozam de
tamanha ojeriza entre os verdes e amarelos e não têm memes do MBL.
Se formos racionais e admitirmos que Lula sim ganhou um apartamento e
metamos no mesmo caso, embora sejam processos diferentes, o sítio de Atibaia, o
valor do apartamento mais o sítio cabe em uma das malas que o Geddel tinha em
seu apartamento na Bahia. Eram oito malas e sete caixas se não me falha a
memória. Assim sendo, por que os cavaleiros dos bons costumes não odeiam
Geddel-Temer com uma intensidade 15 vezes maior que detestam Lula e sua única
mala?
A resposta está na melhor e mais correta frase de toda a vida pública de
Lula:
"Eu não sou mais um ser humano, eu sou uma ideia". Lula é uma
ideia. Detestável para muitos. Uma ideia que não coincide com a realidade de
seus governos. Uma ideia que apaixona a seus defensores, mas que, repito, não é
a realidade. Lula é o pai dos pobres para seus cegos defensores; para seus
inimigos, Lula é um comunista comedor de criancinhas, mesmo quando, durante seu
longo tempo no poder, de comunista só teve as cores de sua gravata engomada.
Ama-se Lula pelo que ele não é, o homem mais honesto do Brasil, odeia-se Lula
pelo que ele NAO representa. Odeia Lula, mais do que tudo, pois vendeu a
ideia de que a esquerda jamais sairia do poder, gerou medo, a direita sentiu
que jamais seria a mamadora principal das tetas nacionais.
Lula não é odiado. A ideia associada a ele sim. Lula paga o pato por ter
optado, algum dia, de entrar num lugar onde jamais foi convidado, apesar de que
a bagunça que fez, leia-se programas sociais, não chegou a causar derramamento
de champanhe suficiente para estremecer os alicerces podres da política
brasileira.