sábado, 8 de maio de 2021

A Dinda

Seguidamente alunos me perguntam que eu gosto de fazer no meu tempo livre, ainda mais agora em épocas pandêmicas em que passamos períodos mais longos em casa e economizamos tempo que perdíamos deslocando-nos de um lado a outro. Eu gosto de ver futebol, ver filmes, ler. E escrever. Vejo facilmente mais de dez jogos em uma semana. No entanto, escrevo raramente. Escrever exige tempo, concentração, silêncio. E, cada vez tenho menos tempo e, quando tenho, o cansaço é tão grande que acabo optando por tarefas mais passivas e com menos exigências.

É triste, mas, as últimas vezes que me obriguei a encontrar tempo e forças para ligar um computador que já está cansado de meu rosto já que passamos cerca de 15 horas nos olhando um a outro, é devido a mortes, mortes estas de pessoas queridas, muito queridas, não somente por mim, mas muitos outros.

A loucura que vivemos faz com que comentários livres de maldade como “hoje só morreram 1542 pessoas” sejam encarados como corretos. O que talvez a rapidez do dia a dia não nos deixe perceber é que UMA pessoa é muito. Porque essa UMA pessoa significa mais do que possamos imaginar a outras várias pessoas. Outro comentário frequente e proferido com certa tranquilidade por quem os faz é que “a pandemia mata só os mais velhos”. As pessoas que fazem esse comentário não têm maldade, não os recrimino em absoluto. Evidentemente que seria pior, pela lei natural da vida, que as crianças fossem as mais afetadas por uma pandemia em vez dos mais experientes. É lógico. No entanto, sempre, desde criança, tive uma enorme química com os anciões e muito desse carinho foi devido, claro, à incomparável convivência com meus avós e com os veteranos que os rodeavam e que, por lógica, também estavam à minha volta.

Morreu a Dinda. Dinda de quem? deve estar perguntando algum leitor com menos intimidade com a minha família. Pois morreu a Dinda de todos. A Dinda era chamada de “dinda” pelos seus afilhados que, honestamente, não sei quantos e muito menos quem foram, são. No entanto, o carinhoso apelido não se limitava a esses privilegiados: muitos a tinham como a sua dinda, a Dinda de todos.

A morte da Dinda foi mais um golpe duro de uma época nefasta. Com a Dinda, minha vó, o tio Ayrton e uma época também morreram um pouco mais. Sinto que os dois citados, seus irmãos, morreram um pouco mais para mim. Infelizmente. Não consegui ver a Dinda depois da morte da minha vó, mas tenho certeza de que vê-la seria de certa forma avivar as lembranças e “ressuscitar” um pouco a dona Beatriz. Assim era quando estava com as duas em relação ao saudoso tio Ayrton, pessoa que sinto muita falta e que sentia um enorme carinho. Ele voltava quando era citado e quando tinha histórias contadas em que ele foi protagonista. Pois essa velha guarda morreu ainda mais com a partida do último estandarte.

É impossível desassociar a figura da Dinda de seus dois irmãos. Sempre considerei a Dinda a figura rara do trio. A vó e o tio Ayrton eram os mais geniosos, de pouca abertura, não mostravam os dentes para qualquer um. Era um privilégio ter sido tão querido pelo tio Ayrton como fui eu e meu irmão. A Dinda, ao mesmo tempo em que era parte desse time inseparável que, se fecho os olhos, os vejo, lado a lado, caminhando no calçadão de Ipanema, era a figura estranha, a diferente, a popular, a dinda de todos, a boêmia, a sem qualquer tipo de preconceitos, a que, creio, jamais se irritou em toda a sua vida, pelo menos jamais presenciei tal evento, a que mostrava os dentes para qualquer um, a que jamais ouvi falar mal de outra pessoa, a que jamais vi reclamar de qualquer evento negativo que lhe aconteceu e estes foram vários. A Dinda era um ser simplesmente diferente.

Memórias não faltam. Agradeço ter tido o prazer de aprender a ser melhor com ela e o fiz sem jamais ter escutado um sermão da Dinda, sem jamais ter tido uma conversa séria com ela. Aprendi a ser melhor simplesmente ao sentar-me com ela na sala enquanto esta tomava um café. Um olhar, o sorriso constante, o amor que esbanjava a qualquer momento.

Com a Dinda acampei, fui à praia, me levou até para um grupo escoteiro, mas o que mais valorizo e que sentirei falta foram os mundanos momentos de vê-la chegar na casa de Ipanema, entrar, beijar todo mundo e simplesmente iluminar o ambiente com sua personalidade ímpar.

Adoraria acreditar que de outro lado ela se encontrará com seus irmãos. Adoraria, mas não sou capaz. Partiu no dia do octogésimo aniversário do rei Roberto, ídolo da vó, dando mais uma dessas pequenas e travessas ironias da vida que às vezes me faz pensar que há alguém que está nos manipulando de algum lugar. Filhas, netos, cantores meliantes de bairros boêmios de Porto Alegre, amigos e amigas, familiares, quantos corações partidos deixou a nossa Dinda, Titita, Maria Luíza ou a Linda, mas também quanto nos ensinou e nos amou essa pessoa única e irrepetível.

Desde a morte da vó a Dinda me disse que abria a janela de manhã (a manhã da Dinda era depois do meio-dia...) e perguntava olhando para a janela da vó: “Mana, onde tu andas?”. Pois bem, espero mais do que nada estar equivocado e que essas almas possam estar juntas outra vez depois do breve “divórcio”. Descanse em paz Dindinha querida, contigo levas mais pedaços de uma época sem igual.