domingo, 4 de outubro de 2020

Os Meus Colegas

Sou uma pessoa nostálgica. Extremamente. Xiita. Não sei se foi o passar do tempo, obviamente concomitante com os anos que vamos todos empilhando em nosso currículo/imaginário que também possivelmente foi agudizado com os tantos anos morando fora, não por opção, mas por armadilhas do coração com perdão pelo momento/expressão digno de uma pouca original canção de Fábio Júnior. O fato é que sou nostálgico e me impressiona como os demais podem não o ser.

Nunca em minha vida escutei Belchior. Até alguns anos atrás era apenas um artista que sabia que havia existido. Passou de ser um artista que habitou esse planeta há algumas décadas a ser um artista de bigode e, hoje em dia, fiquei sabendo sobre o final pouco ortodoxo de sua vida. Não saberia citar o nome de nenhuma composição sua sequer. No entanto, através de meu intenso e incansável desejo de aprender/conhecer, li sobre sua vida.

Belchior, li, escreveu inúmeras músicas. Em uma coluna que li, algumas letras foram reproduzidas. Letras que aguçaram a já aguda necessidade minha de estar, ficar em um passado que já não existe mais. Voltar. Nunca as escutei e, nesse exato momento, lutando contra a instabilidade de minha internet em um dia chuvoso e solitário, decidi colocar, pausando e freando o meu cada vez mais pesado e preguiçoso estímulo para colocar pensamentos que gostaria de ver escrito para, passados alguns outros anos e décadas, quando essa nostalgia estiver ainda mais lancinante, minha memória mais desgastada e as pessoas da minha vida cada vez mais abstratas, poder ler e lembrar.

Após escutar um pouco de Belchior, menciono outra obra que passei quase quatro décadas sem dar valor: O Portão. Minha avó sempre foi fã do rei, mas a frivolidade da infância e a rebeldia/egocentrismo da adolescência jamais me permitiram parar e não somente ouvir, mas também escutar a mencionada canção. A letra fala basicamente do momento de voltar, voltar fisicamente a um lugar que sempre foi seu. Mas não terá sido o seu somente no passado. Será, sempre, o seu. A letra, ao mesmo tempo, instiga a dor daquele que quer voltar não ao lugar, mas à época e isso é impossível.

A cada vez que volto para Porto Alegre, religiosamente uma vez por ano, sinto que, dentro de minha intenção, volto porque quero voltar a algo mais do que somente ao lugar que já tampouco existe mais. O portão da casa de meus avós hoje em dia é um muro de mais de dois metros de altura e a grande maioria dos lugares que eram importantes para mim já não existem mais ou estão tão modificados que deixaram de ser esses lugares. Voltar é um desejo fácil, mas impossível, porque o que se quer já se esconde timidamente em nossos imaginários.

Durante minha adolescência tinha o hábito de gravar coisas: programas de televisão, jogos de futebol, shows, entre outros. Gravava-os em fitas VHS. Quando me mudei de minha saudosa casa de Ipanema, joguei todas as fitas fora, pois o saber que todos esses materiais estão a um clique de meus olhos, julguei que seriam somente objetos a ocupar espaços. A única fita que guardei foi a da minha formatura do colégio em 1999. Sempre achei que tinha sido 1998, não sei por quê. Tinha assistido uma vez apenas e foi quando me entregaram, ou seja, no mesmo ano da formatura. Sempre a mantive aí, pois tinha a ideia de digitalizá-la e voltar a ver. Felizmente demorei tanto tempo para voltar a assistir. Durante a quarentena descobri uma livraria que fazia o trabalho de digitalizações e, finalmente, pude ver outra vez. Digo felizmente, pois o tempo decorrido fez com que essas imagens, essas personagens, se tornassem ainda mais fictícias, distantes e fantásticas ao mesmo tempo.

A primeira parte do vídeo mostra alguns dos formandos e outros convidados sentados à beira da piscina da minha ex-colega Camila Trindade. Lembro como se fosse hoje. Observo as expressões de todos como se fosse um adulto observando um grupo maravilhoso de jovens. Não há áudio na grande maioria dessas filmagens iniciais. No lugar do áudio local, soavam canções da época como Mmmbop do Hanson. Daria o que fosse para saber sobre o que falávamos, sobre o que conversávamos naqueles momentos, o que passava por nossas cabeças que juravam que muito sabiam, mas quase nada sabíamos.

Ao observar as imagens fui percebendo algo difícil de encontrar em qualquer grupo humano, mais ainda em tempos de divisões que fazem com que pessoas percam amizades por defender ou criticar esse ou aquele político, pessoas essas que nem conhecemos. O meu grupo era conformado por pessoas muito diferentes entre elas. Obviamente havia colegas com mais afinidade com esse ou aquele, mas todos, sem exceção, sentiam um carinho, respeito, admiração, afeto pelos demais. Nosso grupo era pequeno. Como nós bem dizíamos, estudávamos numa casa. O Saint-Exupèry, tão criticado por nós em épocas que tínhamos certeza de tudo saber, foi o melhor colégio que eu estudei. Enquanto alguns pensavam que mais disciplina e intensidade acadêmica eram necessários, eu cada vez mais confirmo que o clima relaxado do nosso colégio seria o que eu gostaria para um filho caso filho tivesse. A vida adulta é suficientemente longa e recheada de preocupações, aflições e dificuldades. Para que transformar esse período mágico e irrepetível em um prelúdio da vida de responsabilidades?

Quanta amabilidade, quanto companheirismo. Mesmo colegas que não eram muito próximos a mim eu guardo, até hoje, um imenso carinho. Pouca relação tive com a Ana Trevisan, por exemplo. No entanto, o que guardo dela como o que ficou foi SEMPRE me cumprimentar pelas manhãs com um sorriso e um gesto amável. Além disso sua beleza sempre me impressionou e dizia a amigos de fora da escola que estudava com uma das gurias mais lindas desse mundo. A Débora também não era a pessoa mais próxima a mim. Lembro de minha surpresa quando esta foi receber seu diploma ao som de uma de minhas bandas favoritas. Não sabia que ela também gostava de The Doors, mas, se tivesse que associar um adjetivo à Débora, este seria bondade pura. Mário Fabretti, outro que não era dos meus amigos mais próximos, mas é outra pessoa que sempre tive um enorme respeito e um grande carinho. Querido por todos, pessoa boa, lembro de uma vez em que o encontrei com a roupa manchada de sangue na esquina das escadas do colégio. Seu olhar assustado apenas me desferiu uma frase: “Peruca, caguei, que merda, caguei”. Nunca esqueci. Minutos depois descobri que ele tinha acabado de dar uma surra num pobre adversário que não lembro quem era. Lembro que usava piercing no nariz e isso causou o sangue excessivo. Acontece.

Talvez três integrantes do nosso grupo poderiam ser considerados os pilares do grupo: Mariana, Tolotti e Daniel. Entre tantas pessoas espetaculares, esses três se sobressaíam. Os três estavam há muitos anos no colégio. Mariana era das pessoas de melhor coração que conheci, produto de um pai e mãe que eram pessoas ímpares. Lembro do seu Geraldo, mas infelizmente minha memória me fez esquecer o nome da mãe. Pessoas sensacionais que colocaram no mundo uma menina excepcional. A Mariana era a doçura em pessoa, amiga de todos. A nossa Gabriela Tolotti, com uma personalidade bem diferente à da Mariana, também tinha esse talento de circular por qualquer grupo, de agregar, se interessava por tudo e por todos. E, por último, o meu grande amigo Daniel Freitas, um guri brilhante que não me surpreende que atualmente é um grande médico, algo que ele queria desde a infância enquanto os mais inconsequentes como eu nem ideia tinham do que se tornariam. Lembro de desenhar mapas na mesa dele e explicar a localização no mapa dos estreitos de Bósforo e de Dardanelos. Por quê? Porque ele se interessava por tudo e talvez era um dos poucos temas que faltava que falássemos a respeito.

Tivemos também marinheiros que chegaram quando o barco do segundo grau já havia zarpado. A enigmática Laura Chaves que, certa feita, quando a encontrei entre o banheiro e a porta da sala me pediu o favor mais pouco ortodoxo que já me pediram e que me pedirão em toda a minha vida: que se eu poderia amarrar-lhe os cadarços. Nunca perguntei por que a dona Laura me pediu isso, mas me abaixei e os amarrei para o deleite do meu GRANDE amigo Frederico Bitola que, até hoje, volta e meia traz à tona esse ocorrido. Contei a minha esposa certa feita essa história. Ela ouviu e perguntou se eu tinha amarrado os famosos cadarços. Respondi que sim e recebi um “muy bien” como resposta.

A originalidade do Saint-Exupèry pode ser vista em sua, nossa, cerimônia de formatura. Sem regras, sem padrões, sem requisitos. Eu de jeans e camiseta e ao meu lado o Tiago de terno. A cada um que era chamado ao muro de fuzilamento, gritos e chacotas pululavam sendo o nosso Varginha e PH talvez os mais ovacionados. A palavra “bullying” ainda não existia. Enquanto o hino tocava eu cutucava a Dani que estava à minha frente e falava alguma estupidez com outro ser fantástico que tanto enriquecia esse grupo, o nosso Chileno. Há dois metros de distância estavam o Daniel e a Laura enquanto o nosso saudoso Caio falava de nossos futuros. Quem diria que essa dupla terminaria casada e com filhos? Essa jogada do destino terá sido imaginada por algum dos meus colegas? Ou por eles mesmos? Outro de meus grandes amigos, Gustavo Szuster, que suava ao ter que apresentar um trabalho em frente ao grupo e aos professores, hoje é ator bem como o já citado Bitola que decidiu fazer o terceiro ano em outra instituição, pois dizia que jamais iria passar no vestibular se seguisse no Xupetas. Era gozado por mim e Silvio por querer ser alguém na vida, por querer ter sucesso.

Durante toda a minha vida admirei vários professores e alguns deles estavam lá presentes, homenageados e homenageando. Celso Tatão, que até hoje deve lamentar ter sua vida cruzada com a da Dani, o já mencionado Caio, a Genciana que oferecia a mim e a meu séquito de colegas dementes Carol, Taís, Grazi, Lulu e Dani chazinho com bolachas e também o mais novato de todos, Fabrício, o professor de física que apareceu do nada e era mais um amigo de todos do que um maestro. Até hoje guardo o cartão que ele me entregou durante a formatura e é das pessoas que jamais vou esquecer. Impossível também esquecer o carrinho assassino dele em plena cancha de cimento durante um jogo das olimpíadas do colégio, da casa.

Tristemente esse grupo, o último grupo de amigos que realmente tive na minha vida, foi se esfacelando. Ao mesmo tempo em que mantive contato com alguns, perdi totalmente o rastro de outros. Todos terão seguido com suas belas índoles? Terá a vida adulta modificado um pouco a essência dessas pessoas ou essência humana não perece com o cruel e implacável passar do tempo? O que terá restado daqueles jovens nos quarentões atuais? Serão esses vestígios tão significativos como os que em mim ficaram soldados no meu ser? Os que nunca mais voltei a ver ficaram com essa imagem de eternos Peter Pans em minha mente. Que dolorosa vontade de saber da vida de todos eles e que desejo irreal de que todos sigam sendo parte da minha vida. Lembro de sentir falta de todos durante as longas férias de verão.

Naturalmente entendo que esse é o ciclo da vida. Somos e temos etapas. Sei que as famílias que meus colegas constituíram são muito mais importantes do que um saudoso ex-colega. No entanto, não consigo relativizar a força da amizade e, podem me criticar, não há amizade depois de findada a juventude. Falando com um colega um dia desses disse que deveriam existir duas palavras diferentes para expressar essa relação quando surgida na infância/adolescência e depois já na vida adulta. Meu grande amigo Bruno. Seguimos amigos muito próximos depois de findada a vida escolar, dormia seguidamente na casa dele, éramos parte do mesmo time de futsal do bairro, considerava a sua mãe como uma segunda mãe para mim e hoje pouco sei dele; não conheço a sua filha, por exemplo. Culpa minha? Culpa dele? Não, culpa desse enigmático fator infindável e incansável chamado tempo.

Pausava o vídeo seguidamente. Vi todos os meus colegas. Vi a dona Mirtes brilhando no meio da audiência. O nosso Xupetas era tão informal e único que nem passou pela minha cabeça convidar os meus pais para irem à formatura. Fui sozinho como se estivesse indo para um churrasco com meus amigos. Lembro que meu tio estava na minha casa e, como ele morava na Vila Assunção, perguntei se, quando fosse embora, poderia me deixar na Sociedade de Engenharia. A reação dele foi: jogo de futebol? E eu respondi: não, uma festa. E já que falei em segundas mães, não poderia deixar de destacar a presença de dona Mirtes, outra de minhas poucas segundas mães que essa vida me deu, uma das três apenas para que ela não pense que esse título é, de certa forma, “vulgarizado” pelo seu rebento. Lembro do Serjão, pai do Bruno, do Biba bem novinho ao lado do orgulhoso seu Marcelo que foi o único genitor que foi até a frente fotografar/filmar sua filha no momento de receber o diploma por talvez suspeitar de que isso talvez jamais acontecesse. Que grandes pessoas tive a honra de conhecer e de conviver e uma pena que, nesse meu último recurso de maltratar a minha nostalgia não estavam presentes alguns membros por diferentes motivos: Chico, que uma vez fugiu de uma aula de geografia saindo pela janela; Carioca, que uma vez me disse que eu era o mais difícil de marcar nos nossos jogos na quadra verde do colégio; Lulu que uma vez, em parceria com a minha amada Carol, me escreveu uma carta de arrependimento, pois me negou uma bolacha; Cecin, grande figura dessa camada que chegou de colégios mais exigentes da zona sul assim como a Patrícia Balestrin, das pessoas mais humanas e queridas que já conheci e o Arthur; Roman, o Giuliano, Trentini, Carol, Grazi, Celso, Lipe, Celso, Koucher, Xanda...onde andariam? E a Camila? Cedeu a casa, era membro do comitê organizador da formatura, por que não recebeu o diploma conosco?

Viajei o mundo inteiro e sempre tenho uma próxima viagem sensacional preparada, mas trocaria qualquer destino por um dia com meus colegas. Enquanto a maioria das pessoas quer ainda descobrir o mundo, eu só quero voltar à Zona Sul, àquele nosso mundinho simples e fácil, àquele mundo limitado composto de Exupèry e Zona Sul, ir da casa de um para a casa de outro. Eu voltei e volto todos os anos. A Zona Sul é a minha Passárgada, mas o lugar que eu quero voltar é impossível. Não é um espaço físico e sim um estado de espírito, um tempo, um imaginário. Por isso, em meio à tanta alegria quando vou a Porto Alegre, alegria essa causada por rever pessoas que amo sempre é açoitada por uma aguda, mas controlável tristeza, tristeza essa causada pela repetitiva confirmação de que o que quero é impossível, mas eu sigo tentando. Eu sigo voltando.

É difícil dizer qual é meu filme favorito, mas talvez “Conte comigo” o seja. Cada vez que o vejo, ao final, quando o narrador termina sua carta, uma lágrima às vezes física outras vezes imaginária escapa de meus olhos. E a frase que ele acrescenta ao final dizendo que jamais teve amigos como os de sua infância é a maior verdade que pode existir. Ditatorialmente afirmo que a Camila jamais terá uma amiga como a Ana, que o Beto jamais terá um amigo como o Chico, a Débora jamais encontrará alguém como o Mário ou a Lulu tampouco encontrará alguém como a Trentini. Não há amigos como os amigos dessa época. Eu jamais voltarei a encontrar pessoas como os meus amigos do Xupetas.