quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Charlie Watts




 

Não vou mentir ao dizer que lembro da primeira vez que ouvi os Rolling Stones tocar. Não lembro. Meus pais sempre foram grandes fãs da banda o que me faz pensar que devo ter escutado desde os primórdios de meus meses fetais. Meu pragmatismo me impede crer que isso possa ter influenciado minha admiração vindoura, mas, após abandonar o conforto uterino e chegar a uma idade em que música poderia ser escutada e não somente ouvida, comecei a gostar. Uma vez mais não vou poetizar a história e dizer que me apaixonei pela banda em minhas mais púberes idades. Gostava apenas.

 

Na pré-adolescência comecei a realmente gostar da arte música. Outra vez: os Rolling Stones não eram os meus favoritos apesar de que estavam incluídos entre os primeiros CD’s que ganhei/comprei. Meu pai dizia que estes eram os melhores e fazia vista grossa a bandas mais contemporâneas. Eu apenas respeitava e discordava em um silêncio de altos decibéis e de frenéticos solos de guitarras de bandas mais pesadas como Metallica e Iron Maiden, os meus xodós da idade escolar. Relaciono, aqui sentado, idade a gosto musical. Com limites, obviamente. O excesso de energia, rebeldia, revolta, ânsia de questionar e de chamar a atenção, são características que talvez tenham feito que o jovem Eduardo se inclinasse pelas bandas que abrigavam em seu colo tais características. Vale ressaltar que sigo idolatrando estas e outras bandas de som mais agressivo, mas estas deixaram de ser as minhas favoritas. Digo, em uma espécie de “sincericídio”, que a perda de energia causada pela idade é diretamente proporcional ao número de acordes por segundo dos guitarristas de nossas bandas favoritas o que também inclui a velocidade em que os bateristas manejam suas baquetas.

 

Nos primórdios de minha vida universitária comecei a me dar conta de que as audazes certezas infanto-juvenis não eram reais. Todo juvenil jura que seus gostos, ideias e ideais jamais mudarão, que são dogmas rochosos; pois eu, como todo mundo, mudei. A energia foi se esvaziando, mais paciência foi ganhando espaço, visão de mundo foi se modificando e comecei a diminuir o número de acordes de minhas guitarras. O avanço da internet que permitia que pudéssemos escutar tudo e todos sem depender da já decadente MTV, também foi um fator. Ouvi álbuns inteiros dos Rolling Stones, diferentes aos que eu tinha. Álbuns mais antigos dos que eu tinha. E certa feita escutei “Let it Bleed” que, para mim, é um dos melhores da história da banda. A partir desse momento, os Rolling Stones começaram o lento processo de chegar, com paciência típica de senhores de então uns 60 anos, ao topo de minha bastante exigente pirâmide musical. A última banda que ficou pelo caminho foi The Doors. Chegaram ao topo. Com calma. Se eu fosse uma pessoa egocêntrica, diria que esta é uma grande conquista dos Stones: conquistar a alcunha de banda favorita de um jovem universitário depois de mais ou menos 45 anos de carreira. Sou difícil de ser conquistado.

A novidade do Youtube permitiu vê-los “ao vivo”. Cansei de ver fascinantes performances da banda nas mais variadas décadas de sua existência. Aprendi a adorar cada membro e começou aquele não-planejado sentimento de conhecer não só os membros da banda, mas as pessoas. Fui morar na Inglaterra e um de meus objetivos era vê-los ao vivo. Não foi possível pelas mais distintas razões. Somente consegui estar em um de seus shows pela primeira vez em Bogotá, há pouco mais de cinco anos atrás. Desde o momento que a banda invadiu o palco ao som de Jumpin’ Jack Flash minha relação com a banda foi fortemente modificada, algo que não considerava possível de acontecer. Algumas lágrimas, para a minha surpresa, escaparam languidamente de meus olhos. Ver os Stones ao vivo foi, sem dúvidas, a maior experiência artística da minha vida. Lembro de ter perguntado para o Lucky, que já os tinha visto em Porto Alegre antes de eles chegarem a Bogotá, se eles ainda conseguiam oferecer um show respeitando o significado de tal palavra e considerando as idades avançadas de seus membros. A resposta tinha sido “eles são demais, o show é fantástico”. E sim, ver a maior banda de todos os tempos ao vivo, contrariando leis da física, do bom senso e da natureza, é fantástico, foi fantástico.

Anos depois, a banda anunciou uma nova turnê pelos Estados Unidos. Como quem não queria nada, fui averiguar as datas. O show em Miami, há menos de três horas e meia de voo daqui, cairia na Semana Santa que eu teria livre na universidade. Pensei em ir e minha esposa me convenceu em dois minutos. Não tenho uma esposa normal que diria que era um desperdício de dinheiro e energias. Ela tinha mais certezas que eu. Comprei passagem e ingresso. Veio a cirurgia de Mick Jagger e toda a turnê foi adiada. Para agosto. Troquei a passagem. O show seria num sábado e eu viajaria na sexta e retornaria no domingo. Em uma tarde, caminhando pelo campus, recebo um e-mail: a data do show havia – novamente – sido modificada. Sentei-me, abri o e-mail e li calmamente: ao invés de ser no sábado, seria na sexta. Felizmente o meu voo era vespertino e o show noturno. Fui do aeroporto diretamente para o estádio e vi, não somente os Stones novamente na minha frente, mas a última apresentação de Charlie Watts com a banda e, consequentemente, a última vez que os quatro Stones tocaram juntos. Quis o destino. A fortuna que gastei e a energia valeram cada centavo/gota de suor.

Quando os Rolling Stones eram apenas uma banda para mim, assim como a grande maioria, tinha a Mick Jagger e Keith Richards como meus favoritos. Desde que esses quatro velhotes passaram a ser mais do que membros dos Rolling Stones para mim, Charlie passou a ser meu favorito. Certa feita minha esposa me disse que minha vida em nada se modificaria se amanhã eu passasse a ser o homem mais rico do mundo. Eu a corrigi adicionando a palavra “quase” antes de nada. Charlie Watts não era o homem mais rico do mundo, mas possuía fortuna infindável e era um rolling stone. No entanto, Charlie sempre se sentiu um ser comum. Não critico as vidas lascivas, excêntricas, cheias de excesso e de procriação desenfreada dos demais membros do grupo. Defendo a teoria de que algumas pessoas, por razões que seriam contraditórias de explicar, têm certos direitos que nós, mortais, não temos. Aceito que Mick Jagger possa fazer coisas que eu não poderia fazer. São seres especiais. Charlie poderia ser dessa casta, mas, usando suas próprias palavras, era apenas um cara que tocava música.

Charlie Watts foi um rolling stone casado desde os primeiros anos da banda com a mesma mulher até a sua morte. Teve uma filha apenas e dentro do casamento. Dizia ter quatro carros antigos que não dirigia nunca. Era o caricato exemplo do baterista: sempre atrás com poucas luzes em cima de si. Charlie era um baterista genial sem jamais ser protagonista. Ginger Baker, John Bonham, ambos mostravam sua exuberante qualidade em solos e, de certa forma, arrastavam os holofotes para a zona opaca onde as baterias se encontram, lá no fundo, iluminada por uma lânguida fagulha de luz morfética. Charlie não precisava de solos. Charlie era o jogador que joga para o time. O Makélélé dos “galácticos” do Real Madrid. Manejava brilhantemente o ritmo cardíaco de outros três velhos que já também cada vez estão mais íntimos do pórtico dos octogenários. Charlie era o perfeito gentleman inglês. Entre tantas histórias, certa vez passou longo tempo brabo com os demais membros, pois estes tiveram a ideia de tocar vestidos com roupas em farrapos. Charlie, acostumado a ternos impecáveis e até a cartolas de lorde, disse ter se sentido mal durante todo o show e que não via a hora de que acabasse.

Arriscaria a dizer que Honky Tonk Women é sua melhor performance e até, com pedido de perdão antecipado, diria que, em Gimme Shelter, o pacato Charlie clama um pouco por mais atenção.

Independentemente do gosto de cada um, considero impossível, pela trajetória e pela incrível atualidade, que os Rolling Stones não sejam considerados os maiores artistas da história contemporânea. Mais de 50 anos de carreira e uma sobrevivência a todas as mudanças que nosso planeta e sociedade sofreu durante todas essas décadas.

Tristemente, somente a morte tem me feito dedicar o meu pouco tempo a escrever. Bebês também nasceram nesses últimos tempos, mas, por algum motivo, a morte para mim é algo mais inspirador para a escrita. Quem morreu viveu e dá mais argumentos para serem postos em um papel virtual. A morte de Charlie e o iminente fim de um patrimônio vivente da humanidade gera essa sensação de fim de ciclo, fim de época, fim de era. A partida de Charlie, assim como a de Maradona, confirmam a óbvia impossibilidade de driblar a morte, seja com a perna esquerda ou com duas baquetas localizadas atrás de outros três rolling stones. Tudo perece. Infelizmente de tempos em tempos temos a confirmação da inexistência do infinito, do imortal.

“Se seguirmos poluindo o planeta dessa forma...que mundo deixaremos aos Rolling Stones?”

“No caso de uma nova bomba nuclear, só sobreviverão baratas e os Rolling Stones.”

Infelizmente são apenas piadas que já, infelizmente, vão perdendo a graça devido à crua fragilidade do ser humano. Descanse em paz, Sir Charlie Watts e torne o lugar para onde foste um recinto mais elegante e humilde, comprovando que esses dois adjetivos podem conviver. Charlie sempre foi elegante e humilde e será, eternamente, um rolling stone.

 

 

sábado, 8 de maio de 2021

A Dinda

Seguidamente alunos me perguntam que eu gosto de fazer no meu tempo livre, ainda mais agora em épocas pandêmicas em que passamos períodos mais longos em casa e economizamos tempo que perdíamos deslocando-nos de um lado a outro. Eu gosto de ver futebol, ver filmes, ler. E escrever. Vejo facilmente mais de dez jogos em uma semana. No entanto, escrevo raramente. Escrever exige tempo, concentração, silêncio. E, cada vez tenho menos tempo e, quando tenho, o cansaço é tão grande que acabo optando por tarefas mais passivas e com menos exigências.

É triste, mas, as últimas vezes que me obriguei a encontrar tempo e forças para ligar um computador que já está cansado de meu rosto já que passamos cerca de 15 horas nos olhando um a outro, é devido a mortes, mortes estas de pessoas queridas, muito queridas, não somente por mim, mas muitos outros.

A loucura que vivemos faz com que comentários livres de maldade como “hoje só morreram 1542 pessoas” sejam encarados como corretos. O que talvez a rapidez do dia a dia não nos deixe perceber é que UMA pessoa é muito. Porque essa UMA pessoa significa mais do que possamos imaginar a outras várias pessoas. Outro comentário frequente e proferido com certa tranquilidade por quem os faz é que “a pandemia mata só os mais velhos”. As pessoas que fazem esse comentário não têm maldade, não os recrimino em absoluto. Evidentemente que seria pior, pela lei natural da vida, que as crianças fossem as mais afetadas por uma pandemia em vez dos mais experientes. É lógico. No entanto, sempre, desde criança, tive uma enorme química com os anciões e muito desse carinho foi devido, claro, à incomparável convivência com meus avós e com os veteranos que os rodeavam e que, por lógica, também estavam à minha volta.

Morreu a Dinda. Dinda de quem? deve estar perguntando algum leitor com menos intimidade com a minha família. Pois morreu a Dinda de todos. A Dinda era chamada de “dinda” pelos seus afilhados que, honestamente, não sei quantos e muito menos quem foram, são. No entanto, o carinhoso apelido não se limitava a esses privilegiados: muitos a tinham como a sua dinda, a Dinda de todos.

A morte da Dinda foi mais um golpe duro de uma época nefasta. Com a Dinda, minha vó, o tio Ayrton e uma época também morreram um pouco mais. Sinto que os dois citados, seus irmãos, morreram um pouco mais para mim. Infelizmente. Não consegui ver a Dinda depois da morte da minha vó, mas tenho certeza de que vê-la seria de certa forma avivar as lembranças e “ressuscitar” um pouco a dona Beatriz. Assim era quando estava com as duas em relação ao saudoso tio Ayrton, pessoa que sinto muita falta e que sentia um enorme carinho. Ele voltava quando era citado e quando tinha histórias contadas em que ele foi protagonista. Pois essa velha guarda morreu ainda mais com a partida do último estandarte.

É impossível desassociar a figura da Dinda de seus dois irmãos. Sempre considerei a Dinda a figura rara do trio. A vó e o tio Ayrton eram os mais geniosos, de pouca abertura, não mostravam os dentes para qualquer um. Era um privilégio ter sido tão querido pelo tio Ayrton como fui eu e meu irmão. A Dinda, ao mesmo tempo em que era parte desse time inseparável que, se fecho os olhos, os vejo, lado a lado, caminhando no calçadão de Ipanema, era a figura estranha, a diferente, a popular, a dinda de todos, a boêmia, a sem qualquer tipo de preconceitos, a que, creio, jamais se irritou em toda a sua vida, pelo menos jamais presenciei tal evento, a que mostrava os dentes para qualquer um, a que jamais ouvi falar mal de outra pessoa, a que jamais vi reclamar de qualquer evento negativo que lhe aconteceu e estes foram vários. A Dinda era um ser simplesmente diferente.

Memórias não faltam. Agradeço ter tido o prazer de aprender a ser melhor com ela e o fiz sem jamais ter escutado um sermão da Dinda, sem jamais ter tido uma conversa séria com ela. Aprendi a ser melhor simplesmente ao sentar-me com ela na sala enquanto esta tomava um café. Um olhar, o sorriso constante, o amor que esbanjava a qualquer momento.

Com a Dinda acampei, fui à praia, me levou até para um grupo escoteiro, mas o que mais valorizo e que sentirei falta foram os mundanos momentos de vê-la chegar na casa de Ipanema, entrar, beijar todo mundo e simplesmente iluminar o ambiente com sua personalidade ímpar.

Adoraria acreditar que de outro lado ela se encontrará com seus irmãos. Adoraria, mas não sou capaz. Partiu no dia do octogésimo aniversário do rei Roberto, ídolo da vó, dando mais uma dessas pequenas e travessas ironias da vida que às vezes me faz pensar que há alguém que está nos manipulando de algum lugar. Filhas, netos, cantores meliantes de bairros boêmios de Porto Alegre, amigos e amigas, familiares, quantos corações partidos deixou a nossa Dinda, Titita, Maria Luíza ou a Linda, mas também quanto nos ensinou e nos amou essa pessoa única e irrepetível.

Desde a morte da vó a Dinda me disse que abria a janela de manhã (a manhã da Dinda era depois do meio-dia...) e perguntava olhando para a janela da vó: “Mana, onde tu andas?”. Pois bem, espero mais do que nada estar equivocado e que essas almas possam estar juntas outra vez depois do breve “divórcio”. Descanse em paz Dindinha querida, contigo levas mais pedaços de uma época sem igual.

segunda-feira, 29 de março de 2021

Perigo de Gol

A linguagem tem várias formas. Linguagem se associa à língua e, talvez, a forma mais predominante de expressar-se deve ser a fala. Falamos mais do que escrevemos. Comunicamos melhor falando que escrevendo? Alguns. Outros o fazem melhor através da arte. Pinturas, poemas, livros, esculturas, todas essas formas podem ser consideradas as ideais de comunicação para alguns.

Eu falo mal. Expresso-me de forma confusa em qualquer idioma oral. Gaguejo. Não consigo que meus lábios se movam com a mesma frequência que meus pensamentos. A minha avó tinha dificuldade em me entender. Os mais próximos talvez já nem percebam pelo simples motivo de ter o costume. No entanto, sempre que tenho algo mais relevante para transmitir, escrevo. Exemplo? Após uma semana espetacular recheada de saudosismo e amizade genuína com meu irmão Pingo em sua casa, saí, me despedi, agradeci. No meio do caminho uma mensagem de texto “oficializando” o meu agradecimento.

A Mirtes nos deixou essa semana. Um golpe duro. Nesses últimos dias me comuniquei com o Nuno por mensagens de voz. Ele me mantinha atualizado sobre a situação da Mirtes. Mandei algumas mensagens longas, confusas, me perdia. Ainda não criei coragem de ligar para as três pessoas que pretendo ligar algum dia para dizer algo: o próprio Nuno, a Bola e a Michele; Michelle, senão a alemoa me xinga. Quando ligarei para eles não posso dizer. Nesse momento eles não deverão querer me escutar. Pode ser amanhã, no próximo fim de semana ou no ano que vem. No momento correto eu saberei o que fazer. Devido a toda essa impossibilidade, contando, obviamente, a distância, decidi manifestar algo através de meu texto. Seu filho o fará melhor quando também perceber que o momento chegou. A Michelle escreveu lindas palavras e ilustrou com imagens da Mirtes saltando como uma louca num pula-pula. Não poderia ter escolhido melhor. Que definição mais perfeita e apurada sobre quem era a Mirtes, quem é a Mirtes porque só se morre quando se é esquecido e essa terá muitos cérebros, alguns mais veteranos, outros juvenis, para jamais deixá-la nos deixar. A minha querida e saudosa amiga Alina também nos entregou lindas palavras – “a Mirtes era a segunda mãe de todos”. Não há melhor definição. A Mirtes, se indagada sobre em que era melhor, deveria dizer em ser mãe. Poderia estar na sua carteira de trabalho. Profissão: mãe.

Todo mundo amava a Mirtes. Todo mundo deve ter contado sobre a sua luta a alguém mais. Eu o fiz. Minha mãe, que nunca a conheceu, rezava por ela todas as manhãs. Minha esposa a mesma coisa. Ela a conheceu. Foram alguns encontros e suficientes para causar aquilo que a Mirtes causava em todos que a conheciam. “Adoro a Marcela” ela me dizia sempre. Era para eu me sentir melhor? Não, era porque ela realmente adorava alguém que ela mal conhecia.

A Mirtes tinha isso. Uma aura? Uma alma? Uma personalidade? Eu, mais tosco, iria pela personalidade. Mas, pela Mirtes, abro uma exceção e aceito que alguma outra coisa ela deveria ter, sabe-se lá o quê.

Pois quando falava com minha mãe e com a Marcela, estas, sem culpa, referiam-se à Mirtes como “a mãe de um amigo do Eduardo” ou “la mamá de un amigo de Eduardo”. Mentalmente as corrigia e admito que até uma raiva injusta sentia. Como vão dizer que a Mirtes, a minha Mirtes, era uma simples mãe de um amigo? Começando que são dois amigos que amo e aí incluo a já citada irmã, Michelle, que também era filha da Mirtes. Todos éramos, de certa forma. O curioso foi que algumas pessoas que souberam do falecimento da Mirtes por mim ou já através das pessoas que eu contei, me deram os pêsames. Para mim.

A Mirtes pertencia a mim. Pertencia a todos. Como disse ao Nuno, a Mirtes era propriedade de todos. Ou, pensando bem, todos nós éramos propriedade da Mirtes. A Mirtes, nunca dona Mirtes. Nunca a mãe da Daiane ou a mãe do Nuno: A Mirtes. E que seus filhos biológicos não fiquem ciumentos. O carinho e a atenção da Mirtes não tinham limite. Ela ia conhecendo mais pessoas e a sua capacidade de expandir seu extenso número de pessoas para ela gostar e querer que estivesses ao seu lado, no seu sofá ia aumentando em proporções geométricas.

Em muitas oportunidades a Mirtes me trazia do colégio para minha casa. Certa feita, estacionada em frente ao colégio, um professor se aproximou, Celso Godinho, e este disse à Mirtes que eu estava incomodando muito na aula junto com a Dani, o seu terror. Esse dia eu e a Dani ficamos meia hora a mais do recreio batendo bola na quadra. Como esquecer. Nada no Exupèry era sério. Celso disse isso rindo. Ele sabia que a Mirtes não era a minha mãe, mas disse igual. Enquanto eu e a Daiane ríamos no banco de trás, Nuno no banco da frente, Mirtes escutava e depois, furiosa, me disse: “tu tens que parar com isso, guri, deixa de ser sem vergonha”. Ela foi a única que encarou a coisa de uma forma diferente. Foi cômico a todos os demais. Ela leu de outra forma. E isso acontecia seguidamente com a Mirtes. Ela era diferente. Via e sentia a vida de forma diferente. Tinha certa dificuldade de entender duas coisas: ironias e sarcasmo. E como aproveitamos dessa falha dela para nos divertir...

Hoje meu amigo Dieguinho, em uma ligação que me tocou, me disse com números, bem dele: dos 14 aos 18 anos estávamos TODOS os dias na casa da Mirtes. Verdade. Depois começaram as universidades e seus horários alternativos e isso dissolveu um pouco. No entanto, durante esses quatro anos, foram, sim, todos os dias.

Histórias não faltam. Estávamos numa fase de crescimento. Comíamos sem parar. A Mirtes corria de um lado para o outro, falava sozinha na cozinha pensando alto. Um dia a escutei falar consigo mesma: “já não sei mais o que dar para vocês comerem!”. Tínhamos comido tudo que havia na casa. Lembro que a cartada final foi o Bolídio assando salames italianos na lareira. E ela adorava isso. Uma vez me fez passar por apuros quando me disse, com cara de preocupação e tudo, que eu tinha comido a maçã do Ico. Quando eu já estava prestes a me levantar e sair pela noite para comprar uma maçã, ela me disse em meio à sua linda gargalhada que eu fosse me catar e que eu fosse à merda. Claro, a Mirtes jamais negaria uma maçã. Ela jamais negaria qualquer coisa, gostava de todo mundo e de agradar a todo mundo. Uma das minhas repetidas formas de irritá-la era, quando almoçava lá, perguntar se eu podia me servir mais e lá vinha o clássico vai à merda ou vai te catar da Mirtes.

 Por que nos encontrávamos sempre na casa da Mirtes dentro de um condomínio onde havia tantas casas de tantos amigos queridos? Nunca nos perguntamos isso. Nunca sequer colocamos em pauta qual seria o ponto de encontro. Era a casa da Mirtes. O Lipe morava há 10 passos da casa da Mirtes. Se fosse por número de integrantes, na casa dos Soares Pereira havia 3,5 integrantes, mais do que os três da casa da Mirtes e me refiro aos “jovens” habitantes de tais moradias. Pois hoje me perguntei por quê. Era pela Mirtes.

Na era pré-celular, e eu devo lembrar aos amigos leitores que fui o último a ter (sim, somente para contrariar) eu aparecia sem saber se o Nuno, a Michelle ou a Bola estaria. Mas a Mirtes quase sempre estava. Dizia-me que o Júnior e a Daiane não estavam, mas complementava com o clássico “fica aí, guri” dela. E eu ficava. Conversando com a Mirtes.

Disse algumas vezes ao Nuno e a outros que é impossível não lembrar da Mirtes sem rir, mesmo estando todos nós no meio dessa injusta tragédia. Tenho inúmeras lembranças. Rio sozinho em casa entre lágrimas que não cessam de querer dar o ar de suas tristes graças. Talvez o único momento em que Mirtes pensava em si mais que nos demais era na hora da novela. Ela gostava, queria escutar. E, coitada, JAMAIS o podia fazer sozinha, em silêncio, concentrada. Sempre havia três ou quatro na sala. Com ela. Obviamente não pela novela. Mesmo assim, apesar de estar vivendo o seu momento, a cada intervalo ela se levantava, entrava na conversa (meu Deus, como falava a desbocada Mirtes...) ou saía num pulo para resolver os problemas que ela captava que, sem muita variação, quase sempre era o desespero dos demais de comer algo. E lá ia ela revirar a cozinha e trazer coisas. Ah, e isso quando ela não se sentava no chão da sua própria casa. Se ela chegava quando as vagas dos dois sofás já estivessem repletas, se jogava no chão. Obviamente todos ofereciam, sem muita esperança de que suas propostas seriam aceitas, os seus lugares; mas lá vinha ela de novo nos mandar à merda e, com o seu espírito eternamente infanto-juvenil, se atirava no chão. Divina a Mirtes.

 

Não lembro quem foram os agraciados em presenciar tal cena, mas a Mirtes, depois de me mandar calar a boca em diversas oportunidades – sim, ela era autêntica e espontânea ao extremo – se levantou. Saiu da sala. Voltou me olhando fixamente e com um passo entre um caminhar apressado e uma corrida. Soma-se a essa espécie de trote, um olhar diferente, assassino, ameaçador. Quando chegou há poucos centímetros de mim, sacou uma fita durex e me colou na boca. Gargalhadas. De todos, mesmo de mim tendo a boca semi colada.

A briga com a Michelle. Das cenas mais bizarras e cômicas que já vi. Terminaram ambas em cima da cama do Nuno agarradas aos tapas uma montada em cima da outra. Desse dia eu sim lembro que somente o Gui me acompanhava. Nuno consternado tentando separar e eu e o Gui sem saber que fazer, se ajudar a separar ou se rir.

Falando em brigas, Mirtes era teimosa como poucos e parecia, com sua voz alta e firme, desfrutar de discutir, mais do que tudo com a Daiane. Era SEMRE a mesma coisa. Um comentário da Mirtes. Daiane contrariava. Mirtes partia para a tréplica, Daiane replicava já, claro, rindo. Mirtes, como disse antes, tinha outra percepção das coisas. Todos os presentes começavam a segurar – ou não – as risadas. Mirtes séria discutindo. E isso acabava com a gritaria das duas que, minutos depois, se tornavam gargalhadas.

Flamengo x Grêmio. Se o Grêmio segurasse o Flamengo, o coirmão seria o campeão. 99% da torcida do Grêmio torcendo, óbvio, pela derrota do Tricolor. Mirtes não. Mirtes tinha valores e conceitos incorruptíveis, imaculados. Convicções fortes que, muitas vezes, se mesclavam com sua teimosia. Fomos, todos gremistas dessa vez, ver o jogo na sala dela. Ela indignada. O Grêmio saiu na frente, ela comemorou. Teimosa. Eu indignado resignando à minha posição de torcedor desse clube traidor. Flamengo empatou, gritos de alegria na sala. Mirtes indignada nos dando lições de moral. O Flamengo virou: abraços e gritos de alívio de todos. Mirtes se levanta e vai ver outra coisa no quarto dela e saía da sua própria sala falando sozinha e blasfemando contra todos nós. Tinha convicções. Percepções diferentes. Era outra espécie.

Levo um CD do John Fogerty. Essa relembrei com o Nuno nesses últimos dias. Coloco. Do nada vejo a Mirtes se aproximando. Enlouquecida. Olhos fechados, em transe, em outro mundo. Começa a dançar. Não sei se rir. Rio. Paro. Volto a rir. Mirtes nem aí. Autenticidade pura. Dançou sem parar todas as músicas enquanto eu, sentado com o Nuno e Bola, ríamos do espetáculo. “Guri, tu vais me emprestar esse disco, né?”. Nem sei se algum dia o trouxe de volta.

Fui também colega de academia da Mirtes por um breve período. Incomodava ela dizendo que ela só ia para conversar. “Que nada, guri, deixa de ser besta!” Era a única pessoa que ainda usava a palavra “besta”. Na academia, sempre cercada de gente, de todas as idades. Eu ia de bicicleta e um dia começou a chover aos cântaros. Ela disse que melhor eu voltava com ela. E a bicicleta? Segundo ela dava para meter no carro. Não sei como, mas ela conseguiu. No caminho para casa ela quis parar no Casca, mercado favorito dela. Ela entrava e falava com TODAS as pessoas do recinto.

Sala lotada. Alguém que não me lembro quem foi, se levanta para ir ao banheiro. O vaso sanitário do banheiro “público” da casa estava entupido. Mirtes, sem titubear, pergunta, no meio de todos: “tu vais fazer cocô? Porque se sim vai no meu banheiro”. Quem normal faria isso? Ela perguntou seriamente, com a maior naturalidade do mundo. Após a reação de todos os presentes ela riu, mas, como era peleadora, começou uma discussão coletiva contra todos onde argumentava não ver problema na pergunta. No mundo dela, na cabeça dela. E oferecer o próprio banheiro para tais propósitos? Quem mais, só a Mirtes.

Foi-se a Mirtes. Deixou-nos. Por quê? Não sei, não entendo e não quero entender. Adoraria ter uma crença que me permitisse ter a tranquilidade de que a última vez que nos vimos não foi a última vez que ela vai me xingar, me chamar de besta e, ao final, dizer para eu ficar mais ou voltar no dia seguinte. Nessa solidão que me pegou a morte da Mirtes eu fui aos nossos chats de whatsapp. Escutei a última mensagem de voz que ela me mandou. Chorei. Fui mais atrás e encontrei uma mensagem que expressa um pouco essa alegria de receber que ela tinha. Disse a Mirtes: “venha almoçar aqui no sábado. Mas antes disso passa aqui para conversar com a Daiane que está aqui. Melhor ainda: vem amanhã ver o jogo”. Simplifiquei a mensagem. Em resumo, ela me convidou para ir todos os dias da semana lá vê-la e hoje penso que daria o que fosse necessário para ter pelo menos uma semana com a Mirtes.

Sinto-me até um pouco egoísta em trazer isto à tona, mas a Mirtes era uma pessoa que me fazia sentir extremamente especial. Muitas vezes, em minhas visitas a Porto Alegre, deixo de fazer algumas visitas, pois tenho o negativo pensamento de crer que já não são tantas as pessoas que ainda têm o interesse em me ver. Mirtes me deixava sempre claro que, pelo menos com ela, isso não era real. Xingava-me por não ir com mais frequência. Também sendo egoísta, Mirtes era Zona Sul, era um imaginário de um nostálgico enfermo como eu, era parte dele, parte fundamental. Esse abandono que a Mirtes me deixou e a muitos mais, é este imaginário cada vez perdendo mais peças, é uma época se apagando e dizendo que tudo passa e que já não voltará jamais. É o vilão tempo colocando obstáculos às nossas memórias. Com a Mirtes morre uma parte grande de todos nós que fizemos parte dessa comunidade, dessa amizade. A Mirtes nos arranca um pedaço importante de nossas histórias, de nossa evolução como seres humanos.

A Mirtes gostava de futebol e quantos não foram os jogos que vimos juntos. Tinha dificuldade em entender a regra do impedimento, até aí tudo bem. Minha vó nunca entendeu e partiu sem entender. O problema grave da Mirtes era não entender a regra do “perigo de gol”. Ela tinha surtos de indignação por coisas que apenas podiam causar graça aos reles mortais, mas uma das coisas que mais a indignava era não entender a tal regra. TODOS comentavam, inclusivo os mais idôneos como o seu Eugênio. “Ah, foi perigo de gol”. A Mirtes saltava INDIGNADA. “Como assim? Se o propósito do futebol é fazer gols!”. Mirtes sempre de prontidão para defender suas convicções com sua voz alta, firmeza, palavrões, cara série e, claro, risos. Justificávamos dizendo que era uma regra, deveria ser respeitada...e o dizíamos entre risos. Mirtes seguia indignada. Nunca suspeitou que a gozávamos. Foi embora sem que nós tivéssemos amadurecido o suficiente para lhe dizer a verdade. Tudo bem, não perdeu nada e se ela soubesse que isso nos causava motivos para sorrir, estaria orgulhosa de seu papelão. Se eu estiver errado e algum dia possa me encontrar com a Mirtes em algum lugar vou lhe dizer que sim, deveria ter ido mais vezes visitá-la e, depois de ser chamado de besta ou de abobado, lhe explicaria que “perigo de gol” é uma ironia e, como muitas ironias, ela interpretava de uma forma diferente, da sua forma, da forma da Mirtes.