sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Nunca

 Não tenho o hábito de mandar felicitações públicas, mas também jamais critiquei quem o faz. De certa forma, é uma possibilidade de unir pessoas ao redor de um acontecimento que pode ser importante para um pequeno coletivo de pessoas. Em épocas pandêmicas ou devido à distância geográfica, funciona como uma alternativa à ausência do estar junto.

Minha vó não tinha um smartphone e muito menos redes sociais. No entanto, frequentemente meus textos chegavam às suas mãos. Havia, lá fora, um exército de agentes que os encontravam e os filtravam para saber se cumpriam requisitos para causar interesse a essa leitora. Algumas vezes meus textos foram impressos e entregues para regozijo desta.

Qualquer coisa que eu escrevesse ou produzisse, muito provavelmente seria de interesse de minha vó. Eu não escrevo e nunca escrevi para ser lido. Escrevo porque gosto de ler meus pensamentos e opiniões. Mais ainda quando é depois de algum período relevante ter transcorrido. Deparei-me, algumas vezes, com textos que escrevi há bastante tempo e é sempre curioso ver as temáticas outrora abordadas e as sutis mudanças de opiniões. Mas, se estivesse em busca de reconhecimento e admiração, minha vó seria a leitora escolhida. Certamente, apesar de admirar muitas outras pessoas e por diferentes motivos, ela é a pessoa que mais me admirou em toda a minha vida. Sempre me colocou em um pedestal que eu, nem ninguém, teria os méritos suficientes para estar. Certa vez, com certo receio, me disse que achava que eu era gay por ser tão bonito. Não era por um comportamento afeminado que acredito que jamais tive; senão por eu possuir um excesso de beleza. Sou tão bonito assim? Os gays são mais bonitos que os heterossexuais? Eu responderia que não às duas indagações, mas esse era o raciocínio dela e quem sou eu para tentar encontrar a lógica que poucas vezes, ou quase nunca, essa vida nos oferece.

Há um mês foi o aniversário de 87 anos dela. O último.

Diferentemente dela, talvez jamais tenha dito o quão bonita ela era. Desde a sua juventude até cada vez que voltava a vê-la em minha tradicional visita anual. Havia diferenças de beleza com o passar das décadas, mas ela sempre estava. Minha vó tinha 49 anos quando eu nasci, não muito mais do que o número de anos que eu tenho agora. E, considerando que não fui o primeiro neto, ela já detinha o título de avó desde a metade de sua quarta década de vida. Lamento profundamente essa nova tendência de ter filhos mais velhos que impera atualmente. Evidentemente tem inúmeras vantagens, mas os pais atuais privam seus filhos da melhor das relações que eles poderão ter em suas vidas que é a relação neto-avós. Sinto-me muito abençoado por ter tido a chance de, apesar de não ter conhecido dois de meus avós, poder ter convivido com uma intensidade de tempo/sentimento invejáveis com os dois que eu tive. Histórias juntas não faltam e jamais serão esquecidas.

Minha vó não poderia ser definida como a típica senhora que adora a tudo e a todos. Não vou ser manipulado pela dor recente e dizer que foi a melhor pessoas que já conheci, posto que ocupa a minha tia Thaís e a Dinda. Minha vó não gostava de cachorros, gatos ou de crianças, sim, de crianças. Seguidamente repete que crianças como os seus filhos e netos jamais existirão sequer parecidos. Será verdade que, entre 7 bilhões de seres humanos que já foram ou seguem sendo crianças que habitam esse planeta, fomos as únicas crianças com méritos suficientes para serem queridas? Como ela não gostava muito de ser contrariada vou ter que concordar sempre lamentando um pouco não ter dado um bisneto a ela para que esse grupo exclusivo de cinco pessoas fosse inchado um pouco mais. Porque claro, se o filho fosse do Eduardo...

Era, sim, uma pessoa que, com o seu ciclo próximo, se tornava a melhor pessoa do mundo.

Tínhamos muitas coisas em comum. Jamais brigamos. Ela nunca me criticou em toda a vida e foi sempre a pessoa que mais me mimou. Sempre que ela não gostava de algo que eu admiro, tentava passar a gostar ou relativizava. Tinha pavor ao som de guitarras, mas, quando mostrei meus vídeos e fotos dos shows dos Rolling Stones em que fui, ela suavizava dizendo, timidamente, que não gosta “muito” da música, mas que, apesar de serem muito feios, entram na galeria de “fantásticos” dela.

Nunca dediquei um texto exclusivamente a ela. Nem a ninguém. Arrependo-me agora que ela não está mais entre nós? Em absoluto. Poderia me arrepender de qualquer coisa em relação a ela? Jamais. Na visão dela fui perfeito e ela sempre foi a minha vó, com seus defeitos, pois eu sim, numa audácia juvenil, os via, mas sempre desfrutamos o fato de estarmos juntos, seja ela me carregando no colo ou nós, há um ano e meio atrás, vendo juntos, lado a lado, algum jogo de futebol. Com certeza hoje meu irmão e amigos entenderão minhas negativas de dormir em suas residências. Meus dias com ela eram poucos e a vida, de certa forma, a cada nova ruga, ia avisando que isso não duraria para sempre. Eu apenas fazia de conta que não entendia as mensagens, mas, no fundo, as registrava. E as temia.

Há alguns anos, em uma de minhas visitas anuais, a convidei para ir ao cinema. O filme era “La piel que habito”. Convenci-a a ir argumentando que o ator principal era o Antonio Banderas, um de seus “bonitões”. Sabia apenas isso e que o diretor era o Pedro Almodóvar. Para mim isso era suficiente. O que não sabia era que o filme era bastante mais pesado do que eu poderia imaginar. Não costumo pesquisar muito sobre os filmes antes de vê-los, ainda mais sendo filme do Almodóvar em quem eu confio no taco. Excelente obra, mas que só consegui desfrutar plenamente quando voltei a ver. Durante a sessão somente pensava no que estaria passando pela cabeça dela. Ao final, acenderam-se as luzes, ela me olhou, sorriu e disse: “É...uma loucura, mas bom hein?”

A vó era algo perdido entre o samba e o tango. Uma ponte aérea entre o Rio de Janeiro e Buenos Aires. Tinha sua malícia carioca que se emaranhava com seu dramatismo porteño. Maliciosamente um dia me disse: tu sabes tudo, deves saber isso também...por que o Messi, após cada gol, aponta para o céu? Eu, obviamente, sabia e, para quem não sabe e não quer perder tempo googleando, ele dedica todos os seus gols à sua falecida avó que não chegou a vê-lo jogar profissionalmente. Que perda. Para o Messi.

Que queria a dona Beatriz conseguir com essa pergunta? Em um momento de corporativismo de avó queria reconhecimento para o poder inigualável que essas têm para com os seus netos?

Disse a ela que, se ela quisesse, eu poderia começar a dedicar todos os meus gols no videogame e nos meus jogos de domingo a ela. Como sempre, modesta, disse que eu deveria era dedicar os gols à Marcela.

Dedicar meus gols jogando FIFA ou os que faço jogando aos domingos seria pouco. Pouco para a magnitude dessa pessoa. Uma pessoa que sempre esteve ao meu lado em todos os momentos sendo a pessoa mais estável da minha vida. Os gols “um pouco” mais importantes que o Messi dedica à sua também devem ser pouco. Pessoa que passava horas a fio me fazendo massagens e cafuné. Quando as articulações das suas mãos se engrunhiam eu apenas dizia “continua...” e lá ia ela outra vez.

Ela me fez, sempre, ter a certeza de que eu era o neto favorito, mas, hoje, passados os anos, suspeito que ela, com sua malícia carioca e sua dramatização porteña, fez com que os outros dois sentissem a mesma coisa. A cada visita minha ela perguntava, cerca de seiscentas vezes ao meu irmão a data exata da minha chegada. Anotava em seu caderno telefônico com mais pessoas mortas que vivas e, mais ou menos dois meses antes, começava os preparativos. 15 ambrosias, em média, eram feitas e devoradas pelo tio Zé até a minha chegada.

Transformava os meus inúmeros defeitos em qualidades e, do alto de sua humildade, sempre atendia as minhas ligações em seus aniversários, até o último, dizendo: ah Dudu, tu nunca esqueces! Como seu eu pudesse ter o direito se esquecer. Eu era, talvez, a pessoa que ela mais admirava nessa vida, ou pelo menos isso ela me fazia perceber. Entre todas as personalidades que ela alcunhava de “fantásticos”, eu parecia ser o mais de todos sendo um dos motivos para tal título algo tão pequeno como sempre ligar para ela nos seus aniversários. Essa era a lógica dela, e não julguemos a lógica dos demais já que, uma das preocupações dela era que, se a humanidade seguisse falando tanto em dinossauros e fazendo tantos filmes sobre isso, esses “bichos nojentos” algum dia iriam voltar. Questão de lógica.

A distância da Bea sempre foi a maior dificuldade minha em morar longe. Pensei que ter morado na Inglaterra ou viajado para a Nova Zelândia seria o mais longe que eu poderia estar dela. No entanto, agora, estamos mais longes do que nunca. Ou mais próximos? O avião e a viagem desgastante não são mais necessários. Agora, quando quero falar com ela, simplesmente penso nela. Vejo suas fotos e lembro de histórias que, felizmente, serão suficientes para mais tempo do que eu passarei por esses lados.

Assusta-me apenas ser igual a ela e marejar os olhos a cada vez que falava de seus pais, mortos, obviamente, há décadas. Gostaria de ter a fé do Messi e poder acreditar que ela está aí em cima de olho no que o “guri impossível que não perdoa e que sempre está pegando no meu pé” anda fazendo.

Incomodei muito a Bea. Desde boladas de propósito na janela dela para assustá-la até as tais pegações no pé que ela sempre, feliz, mencionava. Como dizia a minha mãe, enquanto mais o Eduardo “toreia” ela, mais ela gosta, que nem era com o tio Ayrton”. É verdade. Muitas vezes ela vinha e me contava, de frente, algo que fez e que sabia que eu ia pegar no pé dela. Gostava.

Descanse Bea, já nunca mais vou pegar no teu pé. Apenas te critico pela última vez por me ensinar o significado da palavra “nunca” de uma forma tão abrupta. Poderias ter me esperado. Ou essa praga poderia ter escolhido outro ano para dar o ar da graça.

Seguirei com a tua imagem caminhando no calçadão entre os teus dois irmãos enquanto eu passava correndo e gritava qualquer coisa. Ou, voltando mais no tempo, vendo tu brigando com as abelhas ao colher cachos de uva de nossa parreira para baldes e mais baldes de suco ou para cucas, sem caroço de uva porque, senão, o Dudu não comia.