segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

O Alberto morreu


Minha vó sempre se alarmava – e segue se alarmando – pela velocidade com que passa o tempo. Eu, quando criança/adolescente, do alto de minha arrogância juvenil aliada ao meu engrunhido pragmatismo, sempre rebatia. Usava essa lógica matemática que me caracterizava quando mais jovem. Os dias têm 24 horas, as semanas sete dias, os meses 28, 30 ou 31 dias e os anos 365. Portanto, pensava eu, do alto de minha ingenuidade infantil que todos os dias, semanas, meses e anos tinham a mesma duração. Uma de minhas poucas qualidades é admitir quando estava/estou errado. Sim, a minha vó tinha razão.

O tempo é descrito com números. Números são seres que desprezam a imaginação da interpretação. Não há imaginário, não há diferentes formas de vê-los, lê-los. Então, por que essa impressão de um tempo mais rápido ou mais lento em determinados momentos da vida? Não vou entrar na banalidade de analisar o que representa um segundo nos vaivéns da história com uma decisão de uma prova de atletismo. É obviedade. No entanto sim, o tempo tem caras, nuances e humores que o tornam algo a se sentir de forma variada conforme inúmeros aspectos.

Lembro das férias escolares de verão. Hoje não sei como estão as coisas, mas no meu tempo eram cerca de três meses. Eram eternas. Desfrutava. Até certo ponto. Eram três meses tão longos que chegava um ponto que cansava. A mente ávida por novidades de uma criança se cansa do mesmo e já quer algo diferente, novo. Os mesmos três meses hoje passam sem eu nem me dar conta. E a minha tia Tânia, como demorava para vir nos visitar?

A percepção do tempo é proporcional a idade das pessoas? Talvez. Essa é a única coincidência que encontro. Podem existir outros fatores? Possivelmente. O momento anímico, a avidez, aceitação ou a busca desesperada pela tão ansiada felicidade pode manipular essa percepção de tempo. Não sei, nada sei.

Minha arrogância juvenil, e repito o adjetivo porque é, talvez, o único que se encaixa quando analiso o que eu era há alguns bons anos atrás, me fazia pensar e ter duvidosa certeza de que, tudo que eu defendia, pensava e acreditava ser verdadeiro e correto naqueles tempos eram dogmas, indiscutíveis, e que jamais seriam alterados em meu mecanismo de pensar. Hoje, a cada dia tenho mais e mais dúvidas. Parafraseando outros mais ilustres do que eu, tudo que sei é que nada sei e já não pertenço a nenhum “ismo”. Porém, adoraria ter certezas.

Quando adolescente uma de minhas “certezas” era a decisão de morar em outro país. Não sei se para sempre, mas tinha que sair. Saí. Tive uma experiência incomparável e que, com perdão pela simpleza da frase, mudou a minha vida e, como uma de suas tantas consequências, fez com que eu esteja morando em outro lugar. Hoje, aos 36 anos, idade que não vê a hora de atropelar os 37, 38 e seguir sua rápida “evolução” despiedada, penso - eis a contradição! -  que, se tivesse que escolher um lugar para morar, este seria, vejam só, nenhum dos outros dois países que morei e muito menos um dos mais de cinquenta países que já visitei. Eu escolheria Porto Alegre.

O texto não é sobre a cidade que me viu nascer e, sendo assim, não me alongarei em críticas nem elogios a tal lugar. Porto Alegre está longe de ser das melhores cidades que já estive, até, se apertado, diria que não gosto da maioria dos traços de Porto Alegre, mas há algo chamado imaginário que me faz, cada vez mais, em uma intensidade inversamente proporcional à piora da qualidade de vida da capital dos gaúchos, querer voltar. O mais provável é que jamais voltarei, embora a visite todos os anos, mas a vontade está. Nesses dias mais silenciosos – e são cada vez menos – aparecem lembranças, cheiros, pessoas, lugares e momentos que jamais viverei de novo em lugar algum. Mergulhei com tubarões em uma ilha paradisíaca da Tailândia há poucos meses atrás. Vi o Coliseu iluminado na puberdade de uma noite de verão. Senti o excesso de significados da Acrópoles, caminhei pelo maior templo jamais construído pelo ser humano no Camboja, entre outras aventuras, porém, nenhuma dessas histórias/sensações pode ser comparada às conversas que tive com amigos mais próximos e familiares entre alguns baldes de suco de maracujá ou de uva em dias comuns e correntes que, nesses momentos quando ocorreram, passaram anonimamente de cabeça baixa em direção ao óbvio esquecimento. Pois esses momentos ressuscitam mais e mais fortes e cada vez mais cheios de significado e saudade. Demonstram-se indeléveis. Sinto falta de algo que nem sei o que é.

Este ano, durante a minha infalível visita a Porto Alegre, fiquei sabendo que o Alberto estava mal de saúde. Dias depois, antes de muitos, recebi a notícia de que havia morrido. Morreu o Alberto.  Aposto que meus três leitores sabem quem é dito cujo, mas, se estou ganhando novos adeptos em tempos de leituras de no máximo 140 caracteres, explicarei quem era o Alberto. Os três já citados não precisam pular para o próximo parágrafo, pois, talvez, tampouco sabem sobre o simbolismo por trás do velho gremista.

Ipanema é a minha Porto Alegre. Pouco saí das fronteiras da “princesinha do mar”, apelido dado pelo poeta Ângelo Moura Tergolina que, diga-se de passagem, jamais terá acesso a este texto que sutilmente o homenageia já que, dizem as más línguas, as meninas da casa de burlesco do andar abaixo do dele trocaram a senha do wi-fi que ele surrupiava. Uma pena. Sinceramente, a fome de conhecer o mundo que sempre tive (e ainda tenho), se escondia em algum recinto que aparentemente era impossível de escapar. Não me interessava em sair do meu bairro, da minha fantasia, da minha Pasárgada. O Alberto, durante as primeiras décadas da minha vida, aliás, da NOSSA vida, pois aí incluo os amigos do bairro, era o único mercado que havia há uma distância razoável de nossas casas. 

Um balcão, uma balança, um cortador de frios, um congelador, uma estrutura de madeira com frutas em sua maioria putrefazendo-se e um pôster do Grêmio campeão do mundo. Isso era o Alberto. Tão “old school” que talvez tenha morrido sem jamais ter escutado tal estrangeirismo. O que havia atrás daquela porta que ele cruzava de vez em quando? Não sei. A complexidade do bar/mercado do Alberto era tanta, que reunia todas as faixas etárias do bairro. Durante o dia podia-se encontrar a velha guarda, várias caras que cada vez são mais difíceis de lembrar e nomes cada vez mais esquecidos. Lá se juntavam. Zero sofisticação. A elite do bairro, a classe média e os operários. 

Alguns estacionavam suas Mercedes enquanto outros adentravam o recinto com suas Havaianas bicolores. Harmonia total. Um lugar onde não havia diferenças, não havia relógio e que havia nada além do momento. Cachaça no inverno para esquentar. Cerveja no verão escaldante para refrescar.

A geração outrora jovem do bairro, lá ia para cumprir os favores de mercado das famílias ou para também dar-se um pouco de prazer ao tomar um refri ou comer um picolé. A maioria tinha um caderno onde o homenageado anotava o que era vendido e, ao final do mês, pagava-se. Os velhos importunavam os jovens. Uma camisa do Grêmio (ou deles) era suficiente para acender alguma discussão que sempre contava com o apoio do dono do campinho, gremista dos pés à cabeça. Todo mundo que se via no bar do Alberto era conhecido. De vez em quando havia a alegria de encontrar o meu amigo Rick comprando seus picolés. Ou talvez estava a querida tia Loiva reluzindo suas louríssimas melenas que brilhavam sob o sol escaldante. De vez em quando estava o Bruno ou o Gustavo. Noutros dias o Pablo e sua camisa do Grêmio modelo 1996. Mas sempre havia alguém não atrás dos produtos vencidos lá comercializados, mas atrás de algo que só o imaginário de cada um pode dizer o que realmente é. Até um futebol improvisado era jogado na frente do estabelecimento quando o herdeiro de tal ponto já tinha idade para chutar uma bola. Lá os mais jovens muitas vezes se deslumbravam com as habilidades do Tito, o filho do seu João, família que tanto colaborou na construção e manutenção das variadas propriedades do bairro sempre utilizando os métodos menos sofisticados possíveis de “engenharia”. O Tito jogava bem. O controle de bola dele impressionava o meu avô que reconhecia o talento dos jovens, mas nos desafiava ao dizer que nenhum de nós matava a bola como o Tito.

O Alberto não tinha horários. De vem em quando, depois de fechar ao meio-dia, voltava a abrir às 14h. Em outros dias poderia abrir às 14h30min, 14h45min, 15h ou não abrir. Seu fiel público ia, dava com a cara na porta de ferro enferrujada e voltava resignado com o pensamento de ter que voltar mais tarde, sem indignação. O mercado também jamais sequer cogitou a hipótese de receber algum prêmio relacionado à inovação. Os mesmos produtos desde sempre. De vem em quando Fátima, a primeira-dama, se inspirava e produzia produtos como pastéis e afins, mas nunca se sabia se eles lá estariam. A falta de inovação também valia para o pôster do Grêmio campeão do mundo. O Grêmio ganhou outros muitos títulos, mas jamais algum convenceu ao núcleo do bairro de ter a honra de escalar as paredes gordurosas do mercado do Alberto que, aliás, não tem nome. Se algum dia o Grêmio for campeão do mundo de novo, será que Alberto substituiria o quadro? Ou colocaria ao lado do já cansado pôster? Jamais saberemos.

Quando o mercado foi inaugurado? Até quando vai durar? A esquina da SABI foi vista como um lugar estratégico no que poderia ter sido o único estudo de “marketing” jamais realizado pelo velho Alberto? Não sei.

No entanto, não é só o Alberto que me traz recordações e vontade de voltar. Encontrar um amigo distante, um conhecido, um ex-colega numa fila de supermercado é das coisas que me dói saber que tenho menos de um mês por ano para que me aconteça. Quantas vezes encontrei alguém no Zaffari de Ipanema já em tempos mais hipermodernos? Ou, por acaso, no Centro? Ou ir jogar um futebol e encontrar entre os atletas algum ex-colega, amigo distante? Somente um exilado sabe o gosto deste momento. Esses dias andei pensando no meu amigo Malé. Conheço-o desde que tinha cinco anos e com ele convivi bastante até há alguns anos atrás. A distância nos separou e já se tornou daquelas pessoas que muito provavelmente não o veja em minhas idas a Porto Alegre. Adoro e admiro o Malé e senti essa incômoda mensagem de que já não posso ver e/ou conviver com todas as pessoas que eu gostaria. Penso muito no Jean também, não sei por que, meu amigo desde os cinco ou seis anos também. Uma pessoa que, além de meu amigo, tem minha admiração e que não vejo há anos.

Na minha próxima ida a Porto Alegre passarei pela frente do Alberto. Seguirá funcionando? Estará aberto? Terei a iniciativa de entrar? Provavelmente não, e o motivo é que, o que eu estarei procurando, não se vende lá ou em nenhum outro lugar.

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