sábado, 22 de julho de 2017

O Fim da Infância.


O que faz um ser humano voltar às suas origens? O que faz uma pessoa ver fotos, cavoucar no passado? O que se procura?

Minha vó tem mais de 80 anos. Mora sozinha numa casa que foi construída por meu bisavô. Meu bisavô, o pai de meu avô, era dono de todas as terras do que hoje é conhecido como Ipanema. Construiu uma fortaleza na rua Pasteur onde morou até a sua morte. A quadra onde sua moradia foi levantada foi dividida em quatro quadrantes e, em cada um dos outros três, um filho ganhou de presente um lote. O único que não teve parte do terreno foi o varão da família, o mais velho que, em contrapartida, iria herdar a casa principal, a única construção do “condomínio” familiar que foi erguida acima do nível no lago Guaíba, que fica em frente ao clube construído pelo patriarca no mesmo lugar.

O ciclo da vida não falha e, portanto, um dia, meu avô herdou a casa e para lá se mudou com a minha vó. Ao lado, em parte do terreno principal, meu avô ergueu uma casa onde veio morar depois de já ter os filhos criados e já em busca de um espaço menor já que vivia em uma casa de quase 50 cômodos do outro lado da cidade. Sendo assim, a mudança foi apenas subir alguns metros.

Nos tempos de meu bisavô a casa era como um centro de um clã, de uma família tradicional da cidade. Grandes festas e celebrações eram levadas a cabo em todos os vários ambientes da residência que tinha como destaque uma churrasqueira que acho que poderiam ser assados três bois ao mesmo tempo. Fotos decoravam as páginas de jornais e revistas do recém-nascido “Balneário de Ipanema”.

Nos tempos de meu avô a casa seguiu o mesmo ritmo já com a família mais dividida por motivos naturais: formações de famílias, distâncias. Mas a essência do condomínio familiar sempre foi a mesma. Dada a morte de meu bisavô entrou em cena quem escreve. Saí de um apartamento do outro lado da cidade e fui morar na casa menor de meus avós estando ao lado deles, o sonho de qualquer criança ainda mais considerando que eu, meu irmão e minha única prima costumávamos passar os fins de semana nessa terra que, para nós, era uma Macondo, uma terra longínqua onde íamos após os últimos períodos escolares de todas as sextas-feiras que lamentávamos o final a cada almoço de domingo que contava com seus participantes habitués e diversas outras personagens que apareciam, personagens essas dos mais variados estilos, amigos e familiares de comensais mais regulares.

Os pratos sempre estarão vivos no meu imaginário. O rocambole de carne de meu avô mais conhecido como “jacaré”, os churrascos horríveis preparados pelo mesmo recentemente citado, costelas com a proporção de 1 para 8 de carne para gordura e nervos, mas enfim, era o que o meu vô gostava, uma variedade de doces brilhantemente preparados pela minha vó, pudins, ambrosias, tortas de bolachas, pavês, até sorvetes, e sem máquina! Esses sabores e aromas jamais desaparecerão e me arriscaria a dizer que não só do meu imaginário senão do de todos aqueles que alguma vez tiveram a honra de fazer parte desses singelos, mas cheios de significados eventos. Amigos do meu tio, amigas adolescentes de minha prima que sentiam por mim sentimentos inversamente proporcionais aos que eu sentia por elas, amigos meus, do meu irmão, excêntricos companheiros de aventuras psicodélicas de minha mãe, meu irmão de cinco dias de diferença Ângelo, xodó do anfitrião, a cada domingo existia, em minha mente, a expectativa sobre quem viria para enriquecer o elenco de comensais que encaravam esse domingo como um dia de ócio e prazer, como um evento livre de preocupações, até porque, naqueles tempos, minha avó era a dona da cozinha junto a meu avô e ambos eram os responsáveis pela fartura que víamos em cima da mesa. Nunca esquecerei e talvez nunca me perdoarei por ter perdido um desses domingos por ter ficado dormindo. Acordei tão tarde que o almoço, que normalmente já era tarde, tinha terminado. Tinha tido uma noite anterior de muito videogame com Ângelo e meu irmão e fui traído pela não presença de minha amada tia Thaís que JAMAIS me deixou dormir sequer um minuto após a sua chegada à casa, sempre – e até hoje – com um astral que jamais encontrei em outra pessoa. Pois esse dia perdi o almoço. Saí, de cabeça baixa, com meu amigo Ângelo, a procurar comida já que esta tinha acabado, pois comensais não anunciados apareceram. Lembro do desespero de minha vó ao notar o final da comida, logo ela que sempre odiou a economia gastronômica. Pois saímos de bicicleta por Ipanema até que encontramos um lugar que se enquadrava ao nosso estilo de vida de não lidar com papel-moeda até os 18 anos de idade. Comemos um xis pela zona do Bologna, mas estávamos tristes, estávamos perdendo aqueles momentos que tanto gostávamos e já pensando que teríamos que esperar eternos sete dias para vivê-los outra vez. Pois esse almoço nunca voltará. Não lembro o que comeram, jamais saberei qual foi o tema de conversa desse dia, não lembro quem foram os convidados-surpresa que acabaram com a comida, mas sei que esse dia pode representar a amargura que hoje sinto ao ver oficialmente o final de minha infância ser anunciado. A casa foi vendida. Provavelmente será destruída junto com sua lareira, a mais bonita que já vi e todos aqueles que éramos comensais e/ou frequentadores da casa morrerão um pouco, sofrerão um pouco. E todos aqueles que participaram alguma vez como “extras” se algum dia passarem aqui em frente dirão e pensarão naquele dia, naquelas pessoas que conheciam naquela época ou que conheceram naquele dia.

A casa hoje é triste e vazia, como o é a vida adulta. A casa recebe poucos. A casa é cada vez menos aquela casa que um dia foi. Sua estrutura continua a mesma, mas seus súditos mudaram, se distanciaram, ficaram, de uma hora para outra, longes, ocupados, sem tempo. Reina o silêncio onde antes predominava o murmurinho, a mescla de velhos, adultos, jovens e crianças com latidos de cachorros ao fundo. Ninguém jamais valorizará o fato de morar aqui como eu valorizo o que passei nessa casa, na minha casa, na casa dos meus bisavôs, avós, pais, irmão, prima, tios, amigos, Ângelo, na casa de todos.

A casa é o símbolo do bairro, deveria estar no brasão deste caso brasão existisse. Nada é mais simbólico do bairro que essa casa e a SABI. Quem em Ipanema hoje mora não sabe, jamais entenderão, não valorizarão jamais essa casa e a SABI. Não os culpo, apenas sinto inveja dos que aqui hoje moram e pena por estes não terem vivido aqui em décadas anteriores, nas décadas de ouro.

Ipanema não tinha supermercado. Só o Costa do Sol com seu cheiro de pão novo que vinha dos fundos do local. O segundo maior ponto de venda de alimentos era o Alberto, o típico mercado de povoado, centro de amigos, desafetos e fofocas dos habitantes. Todos se conheciam, todos se cumprimentavam, todos se sentiam as pessoas mais abençoadas do planeta por viver num lugar que poucos conheciam. Aqui vivi os melhores momentos de minha vida que tenho nem a audácia de pensar que um dia viverei algo sequer parecido. A minha infância, pelo menos aquela que insistia em resistir viva em meu imaginário, agora sim acabou, vai-se embora junto com fotos milenares que se espalham por armários de toda a casa. Ao desalojar a casa elas, esses registros de épocas e de pessoas que por aqui passaram, vão dando seu ar da graça numa espécie de último adeus, de encerramento final, como que dizendo, Eduardo, nós nunca mais estaremos juntos, a partir de hoje a tua vida é tu e aqueles que estejam ainda perto de ti, mas nós já fomos para outro lado.

O mercado do Alberto míngua, a criançada na rua desapareceu. Não há cumprimentos porque não há mais conhecidos nas ruas, não há pessoas. A SABI, dizem as más línguas que será comprada e virará provavelmente novas casas. Seu Décio, o capataz da SABI, segue lá e acho que o terei visto pela última vez esta semana que está por terminar. A tia Cenira foi para um apartamento. O jardim impecável do ucraniano Sérgio, meu tio, está sentindo a falta de seu dono e ainda não entendeu o que o destino lhe deu. Tio Ênio já saiu a muitos anos, resta meu tio Valter que será o último/único.

Quais serão as últimas memórias que terei de tudo isso? Durarão elas realmente para sempre? Esses dias não reconheci um guri que era pequeno na nossa época. Ele cresceu, está gordo, barbudo e cabeludo, por isso não sabia quem era. Estará um dia a minha casa em Ipanema irreconhecível? Seguirei eu vindo para cá estando onde eu estiver? Deixarei algum dia de amar tudo isso? Já velho, tentarei voltar? Sentirei o aroma da batata-palha feita em casa da minha vó que comia escondido antes de sair o almoço? Sentirei expectativa tão intensa por algo no mesmo nível em que sentia ao não saber jamais qual era o cardápio e os convidados do domingo? Lamentarei algo algum dia na mesma intensidade em que lamentava quando minha prima não vinha para o almoço de domingo?

Espero não ser traído pela memória que insiste em se enfraquecer com o passar dos anos. Infelizmente isso parece ser verdade. Seguidamente me pergunto se vi ou não vi um dia macacos saltando pelas árvores aqui em casa, também não lembro quem era, segundo meu vô, a bruxa do bairro. Não lembro, tampouco, do nome da querida atendente que nos vendia os botões no Ipanemy. Ao mesmo tempo sei que os lobisomens do meu avô de noites de verão realmente existiam assim como havia tubarões na praia de Ipanema e anacondas no banhado onde a bola caía na FUNSEG. Sei que desfrutei da chapa que era a base dos xises do meu avô, dos campeonatos de pontas na piscina entre eu, Pedro e Ângelo onde existia apenas um juiz, Heitor, que sempre dava dez com louvor para o mais jovem do trio que, por consequência, ganhava sempre. Também ainda persiste as memórias de banhos de chuva, perseguições de bicicleta, da alegria que me dava quando meus primos Marcos, Lúcia, Rodrigo e Renato apareciam nas férias e o motivo não era apenas a presença deles, mas também os bolos de chuva da Ceres. Lembro também das camas de lona e mola em que dormíamos todos no quarto da minha vó onde ficava sozinho acordado até às 5h ou 6h da manhã e tinha como maior prazer encostar a perna na barra de ferro gelada da cama. Campeonatos de futebol, gol a gol, futevôlei...bolas trucidadas pelos cachorros, jogos do Grêmio, os pênaltis contra o Ajax, os 1x5 infartantes contra o Palmeiras, a jogada do Maradona para o gol de Caniggia em 1990, o golaço de Zidane na final contra o Leverkusen, o pênalti certeiro de Dinho em Medellín, meu vô fumando, brigas familiares, festas de aniversários, ingênuas travessuras, abraços, beijos, lágrimas, quantos pudins terão sido feitos dentro dessa casa? Quantos quilos de arroz? Quantos litros de suco de uva e maracujá? Quantos cassetinhos consumidos? Quantas toneladas de manteiga? Quantos gambás nos bisbilhotaram? Quantas brigas de cachorros? Quantas Copas do Mundo? Quantas lembranças...

Adeus casa. Adeus infância

2 comentários:

Ângela Ghizi disse...

Querido Eduardo, este texto está MAGNÍFICO. Conheço bem essa casa. Muitos e belos momentos passei por lá. Parabéns por tanta Compreensão e Sensibilidade!Disseste TUDO! Tudo sobre a Vida que passa, deixa silêncios, fica vazia...mas, sobretudo, deixa MARAVILHOSAS LEMBRANÇAS e ETERNAS!

Ângela Ghizi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.