sábado, 22 de fevereiro de 2014

Doutrinas No Divã

O ano de 2013 pode ser considerado o ano dos protestos no Brasil. Na metade do ano, devido à revolta por mais um aumento das passagens de ônibus em Porto Alegre, parte da população, em sua maioria estudantes, se rebelou contra a medida e usou os gastos abusivos e pornográficos com um torneio de futebol para esbravejar contra tudo e todos. Um ato que, pelo menos em sua origem, não tinha conexões com partidos políticos ou interesses escusos. Com o passar das semanas, alas oportunistas e radicais de direita e esquerda começaram a usar e fazer proveito do rebuliço para difundir suas ideias retrógradas e interesseiras. Nem vou comentar sobre os baderneiros que são tão ideologicamente insignificantes ou nulos, melhor dizendo, que não merecem ser comentados. A direita sempre sorrateira e calculista sentiu as manifestações, algo detestável em sua forma de ver o estado e a política, como uma última e única oportunidade de tentativa para tirar o PT do poder. Dilma e seu governo, com ou sem mensalão, gozavam de imensa popularidade e as próximas eleições eram vistas como um trâmite. A direita então saiu de seu shopping centre com ar condicionado e desceu pro campo de jogo disfarçada de esquerda, ou seja, protestando, clamando por participação popular e almejando um mundo melhor, nada mais do que hippies fardados com camisas Ralph Lauren. A extrema esquerda tampouco ficou atrás. Vinha escondida e sorrateira, desanimada com a virada de cara do PT para sua trupe, pois então colocou as máscaras de fora e novamente voltou a colocar o já velho e arranhado disco do sonho comunista e anárquico. A classe média se manteve intacta e seguia manifestando sua indignação que se alastra para basicamente tudo: o alto custo de vida, os péssimos serviços públicos apesar dos altos impostos, a corrupção, a bizarra escolha de prioridades do governo e etc. Em 2014 a coisa acalmou, mas a indignação está fervendo em outros países. Na Venezuela boa parte da população de um país dividido por um muro ideológico sai às ruas e pede um basta. Essa classe média venezuelana, aliada a sua elite, exigem o fim de um governo que aparentemente só tem olhos para as camadas mais populares e para a sua perpetuação no poder. Há demagogia e oportunismo nessa manifestação venezuelana? Claro que sim. Essa classe média aliada à elite quer vender a imagem de que a Venezuela era uma maravilha antes do governo de Chávez e agora Maduro. Quer convencer os cidadãos de pouca memória ou pouco conhecimento de que Chávez e sua trupe destruíram um país justo e próspero, quase que uma Noruega sul-americana. Ora, qualquer pessoa com o mínimo de bom senso sabe que a Venezuela não era nem perto de uma maravilha social antes de Chávez e tampouco o é agora. Essa parte da população que agora aparece disfarçada de esquerda ideológica quer o quê? Quer a velha república elitista de sempre, onde o Estado servia para manter a plebe longe e deixar uma elite branca gozar das riquezas de um dos maiores produtores de petróleo do planeta, nada diferente do que acontece na maioria dos países árabes pertencentes a OPEP. O que a plebe quer agora? Quer que essa elite corroa e pague os pecados cometidos por séculos. Esse cruzamento de interesses resulta em um país onde não há produtos nas prateleiras, nem papel higiênico e que, apesar da assistência social, enfrenta uma cadeia produtiva que está ruindo a cada nova reeleição da turma de Chávez. Falando em países árabes, podemos voltar para um período anterior ao segundo semestre de 2013 brasileiro e ir para o mundo árabe, mais precisamente para a Tunísia. Foi lá, em um país onde uma elite sanguessuga e que se perpetuava no poder, que a “Primavera” começou e que deve ser o evento mais culminante em todas as manifestações de insatisfação populares que já foram ou que serão citadas aqui. Os árabes foram os pioneiros em usar as redes sociais para algo relevante que não seja selfies de adolescentes ou de patéticos senhores e senhoras de meia-idade em crise existencial. A Tunísia derrubou o seu governo parasita e desencadeou uma série de revoltas semelhantes em seus vizinhos e admiradores. Agora temos a versão europeia. A Ucrânia incendeia-se. A população cansou da corrupção e da demagogia de uma oligarquia mafiosa que governa o país em um sistema político arcaico e confuso. Não querem mais. Querem cortar o cordão umbilical com a madrasta comunista Rússia e querem gozar do capitalismo, querem deixar de ser chamados de soviéticos, querem ser fashion, querem ser europeus, querem ingressar na União Europeia, querem poder migrar para Londres, querem poder receber empréstimos de Bruxelas com condições impossíveis como foi com a Grécia. Esse é o sonho ucraniano. O que acontece com o mundo? Cansamos do capitalismo selvagem? Ou cansamos das oligarquias? Ou cansamos dos demagogos de esquerda que insistem em defender algo comprovadamente fracassado? A resposta é que cansamos de todos os sistemas, a ideia que a aldeia global dá é que cansamos da injustiça causada por seja qual for o tipo de governo. Considero sem titubear que o capitalismo é o menos ruim dos sistemas. No entanto, há capitalismos e capitalismos. Existe o capitalismo inteligente como os dos países europeus, ainda mais bem azeitado em países escandinavos ou nas próprias repúblicas mais ao norte do continente. Por que não vemos manifestações indignadas na Noruega? Ou na Holanda? Simplesmente porque, nesses países, o sistema é inteligente. O que é um capitalismo inteligente? Respondo a pergunta descrevendo o capitalismo burro. O capitalista burro é aquele que não entende a sua doutrina. Qual a base do capitalismo? O consumo. Enquanto mais consumidores e consumo, mais gás é injetado no motor capitalista. Não é difícil entender. Não obstante, inebriados pela sua avareza e ganância, os donos, os mentores e os estrategistas do capitalismo ignoram a lógica mais banal. Se tivermos mais pessoas com capacidade de consumo, melhor distribuição de renda, ou seja, ao invés de uma pessoa consumidora tivermos 100, não se venderão mais carros? Mais imóveis? Mais papel higiênico? Não ganharão ainda mais dinheiro os grandes, médios e pequenos empresários? Mesmo sendo isso algo lógico, o capitalista irredutível, em meio a tacadas em campos de golfe e copos de uísque em Miami ou Dubai insiste de que o Estado é um estorvo ao crescimento da nação; que as leis trabalhistas deveriam ser flexibilizadas para que o empresário possa contratar mais e investir mais. O preço da passagem do ônibus deve aumentar, pois ele, capitalista, tem muitas contas pra pagar, tem que comprar uma nova, mais poluente e maior caminhonete a cada ano e construir uma casa de vidro em Atlântida. Se não se pode aumentar a passagem e lhes obrigam a pagar um pouco mais aos miseráveis motoristas e cobradores de ônibus, que então se retirem os ares condicionados dos veículos, é supérfluo, a plebe não precisa disso ainda mais numa cidade que não é quente como Porto Alegre. Essa, para os mais mal informados, é a solução que encontraram para o entrave no transporte público porto-alegrense, em mais uma manobra suja dos donos do poder. Mais exemplos de capitalistas burros? Os já citados árabes. Vivem em “reinos”, esbanjam brinquedos caros, constroem ilhas artificiais ao mesmo tempo em que destroem a natureza e, em meio ao seu estilo de vida ocidental cafona e extravagante, uma população que nada tem e que jamais chegou sequer perto aos dividendos do petróleo. Alguns como os sauditas ou o Bahrein são mais espertos e abrem suas pernas para as bases americanas militares que lhe garantem proteção, mas outros perderam sua teta, como foi o caso do burro Gadafi e dos burros da Tunísia. Poderia citar o caso do rei da Jordânia que é mais inteligente do que seus colegas e, apesar da bizarrice que uma monarquia representa em pleno século XXI, pelo menos é inteligente e dá liberdade e assistência social ao seu povo que, como consequência, o respeita, o admira e, consequentemente, não se importa que ele se perpetue no poder. Inteligente. Meio termo e bom senso é o que todos, sabendo ou não, querem. Enquanto alguns deputados gaúchos defendem que os proprietários de terra devem ser armar e criar milícias como no “modelo” estado do Pará que, deve-se dizer, é 25º lugar em qualidade de vida entre 27 unidades federativas, ficando apenas na frente de Maranhão e Alagoas, está o bloco não sei o que no Brasil que quer acabar com tudo e, atrás de suas máscaras, usam a acéfala e pura destruição para aparecer. Chegou a hora de se repensar a atuação do poder perante a população, pois se está vendo que, contra a massa, pouco pode ser feito.

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